A proposta do presente
texto é contribuir, ainda que de forma breve e introdutória, para um melhor
entendimento sobre o que é a hermenêutica pós-moderna, e na medida do possível numa linguagem acessível
ao público em geral, para que isso venha a promover um estado de alerta,
principalmente entre os pastores e líderes, diante de propostas aparentemente inovadoras
e sedutoras, mas que na realidade são subjetivistas, desconstrutivistas e
relativistas[1],
que atacam e colocam em risco a ortodoxia (doutrina correta) e a ortopraxia (prática correta) cristã. A leitura dos livros
citados nas notas ajudará numa melhor compreensão, e no aprofundamento dos temas
que serão aqui tratados.
1. A Hermenêutica
Pós-Moderna
A hermenêutica pós-moderna
é caracterizada pelo subjetivismo no processo de interpretação do texto
bíblico. O subjetivismo é caracterizado pela insatisfação generalizada com o
sentido natural, literal das Escrituras, e pela busca de sentidos mais significativos,
supostamente ocultos no texto. O maior perigo das correntes subjetivas é a
falta de compromisso com critérios objetivos que orientem e dêem consistência
ao processo interpretativo.[2] Seria o significado de um
texto uma questão de impressão do intérprete? A autoridade da Bíblia está em
perigo de se tornar impressão subjetiva? Para Vanhozer, talvez sim.[3]
Dentre os diversos
proponentes e pensadores da hermenêutica pós-moderna, três nomes destacaremos
aqui:
1.1 Hans George Gadamer
(1900-2002)
Discípulo tanto de
Heidegger quanto de Bultmann, foi professor de filologia em Heidelberg de 1949
a 1968. Sua obra clássica Verdade e Método
(Vozes), é junto com a obra de Heidegger Ser e Tempo um dos fundamentos principais para os estudos hermenêuticos
modernos.[4]
Para Gadamer, a
compreensão se dá pela fusão de horizontes do autor com o do leitor,
independentemente do conhecimento das circunstâncias históricas em que o texto
foi produzido. O real sentido de um texto, quando ele fala ao intérprete não
depende das contingências do autor e de para quem ele escreveu. Ele (o sentido)
certamente não é idêntico a ele (ao sentido original), pois também é sempre
parcialmente determinado pela situação histórica do intérprete e, por isso,
pela totalidade do curso objetivo da história”[5].
O posicionamento
hermenêutico de Gadamer pode ser resumido da seguinte forma[6]:
- Os métodos de
interpretação são sempre determinados pela época em que existem, sendo produtos
de períodos específicos da História;
- A hermenêutica não é
uma ciência que tem como alvo o conhecimento objetivo e permanente;
- Em vez de procurar
métodos e regras de interpretação que pressupõem a objetividade e a validade
universal dos conceitos e da verdade (como o histórico-gramatical), a
hermenêutica deve buscar entender o que possibilita o conhecimento em geral, já
que a verdade é sempre relativa e subjetiva;
- Um texto possui vida
própria, e seu sentido não é para ser encontrado através de métodos que valorizem
o contexto histórico do autor, mas através do diálogo com o texto no presente;
- O sentido de um texto vai
além daquele pretendido por seu autor, já que a compreensão de um texto não
consiste em reproduzir o sentido do autor, mas em produzir um novo sentido;
- O entendimento de uma
passagem não é causado inteiramente pelos pressupostos do leitor e nem pela
situação histórica original do texto, mas por uma fusão de ambas as
perspectivas (horizontes), ou seja, é o resultado da interação entre os dois.[7]
Para Gadamer, um texto, e
o texto bíblico em particular, não é um repositório fixo de significados, mas
uma mediação de significados. A tarefa do leitor não consiste em determinar o
significado para o autor quando o texto foi escrito, mas entender o que o texto
diz para o leitor presente. A grande distância entre os horizontes (distância
de tempo e cultura) do autor e do leitor torna impossível uma “objetividade
pura” na interpretação bíblica.[8]
A filosofia hermenêutica
de Gadamer ganhou grande aceitação no mundo acadêmico e contribuiu de forma
decisiva par o aparecimento de sistemas de interpretação bíblica centrados no
leitor, inerentemente subjetivos.[9]
1.2 Paul Ricoeur
(1913-2005)
Destacado pensador francês,
cujas teorias hermenêuticas têm sido muito influentes no campo da crítica
literária moderna.[10] É autor, dentre outros, dos
livros A Hermenêutica Bíblica (Loyola)
e Hermenêutica e Ideologias (Vozes).
Reconhecidamente
influenciado por Max, Nietzche e Freud, Ricoeur é conhecido por sua
hermenêutica de suspeição, através da qual busca desmascarar, desmistificar e
expor o real, a partir do aparente.[11] Os mestres de Ricoeur
teriam conseguido, segundo ele, descobrir a realidade por detrás da máscara
textual religiosa. Max afirmou que a religião é o ópio do povo, Nietzche
declarou que o propósito da religião é simplesmente justificar vícios e
fraquezas como compaixão, humildade e amizade, e Freud argumentou que a
religião simplesmente procurava oferecer conforto criando o conceito de um deus
que é pai. As características da hermenêutica de Ricouer são:[12]
- Uma vez escrito, o
texto se divorcia irremediavelmente do seu autor e do contexto em que foi escrito.
A intenção autoral é um alvo impossível de ser alcançado na hermenêutica;
- A interação do leitor
com o texto deve permanecer basicamente aberta, isto é, sem jamais fechar o
sentido do texto;
A textualidade do texto é
colocada no centro da reflexão hermenêutica. Para Ricoeur, a hermenêutica é mais do que
ensino da interpretação de textos e de seus métodos interpretativos. É uma
teoria de uma compreensão abrangente do mundo e da existência humana, realizada
no meio da interpretação de textos.[13]
Fundamental no pensamento
de Ricoeur é o conceito de que o texto, através de sua contextualização, adquire
autonomia tanto em relação a seu autor como a seu leitor.[14]
Interpretar um texto não
resulta em compreender o texto, mas em compreender-se frente ao texto.[15]
1.3 Jacques Derrida
(1930-2004)
De origem judaica, nasceu na Argélia, então
colônia francesa. Tornou-se discípulo confesso de Nietzsche, Rousseau e
Camus. Foi fundador do desconstrucionismo, tese que propõe a indeterminação do
sentido dos textos.[16] Algumas das características
do pensamento desconstrucionista de Derrida são:
- Tem como objetivo
identificar e desmascarar quaisquer pressuposições e princípios reveladores de “metanarrativas”
ou cosmovisões filosóficas, ideológicas ou teológicas, escondidas detrás da
linguagem;[17]
- A tarefa do intérprete
é descontruir o texto. Isto significa reverter sua hierarquia, revelar as suas
contradições internas, sua arrogante proposta de transmitir sentido e revelar
seu compromisso com a manutenção da hierarquia;[18]
- Todos os textos são
compostos de signos arbitrários, e por isso são arbitrários. Texto são,
portanto, fluídos, sempre em movimento, sem sentido fixo ou determinado,
mantendo apenas uma tênue e mutante relação com a realidade objetiva;[19]
- O sentido da linguagem
é oculto e evasivo. Não é possível chegar a uma interpretação válida de um
texto a partir do próprio texto usando-se uma análise linguística e filosófica
das pressuposições ocultas no mesmo;[20]
- A intenção do autor é
irrelevante. Já que tantas pessoas interpretam um mesmo texto de tantas
maneiras diferentes, não pode existir um sentido unívoco e real. O “sentido” de
um texto tem apenas uma relação acidental com a intenção consciente de seu
autor. Portanto, não é possível estabelecer-se uma única interpretação definitiva
para um texto, inclusive as Escrituras;[21]
O desconstrucionismo
propõe, explicitamente, a pluralidade da verdade. Não há uma única verdadeira
interpretação de um fato, de um texto ou discurso. Todas as interpretações são
igualmente válidas. O conceito de verdade absoluta é visto como algo bastante
nocivo, pois toda pretensão à verdade é considerada como arrogante, tirânica e
obscurantista. [22]
Os críticos de Derrida o
consideram extremamente ceticista[23]. No contexto da
interpretação bíblica, as suas convicções foram usadas em certa medida por J.
D. Crossan, um grande expoente de teorias hermenêuticas relacionadas à crítica
literária da Bíblia, e outros. Para a maioria dos intérpretes da Bíblia, o
desconstrutivismo é algo muito obscuro e esotérico para fazer muito sentido.[24]
A sugestão desconstrucionista
de que não existem princípios para uma interpretação certa ou errada, apenas
preferências, desencanta e destitui a hermenêutica.[25]
2. Aspectos Positivos na
Hermenêutica Pós-Moderna
Apesar de todas as
questões até aqui apresentadas, a hermenêutica pós-moderna possui alguns
aspectos positivos:
- A admissão pela
erudição contemporânea, da legitimidade e inevitabilidade das pressuposições na
interpretação de um texto. As pressuposições são inevitáveis, sem serem
necessariamente negativas para a compreensão ortodoxa da verdade bíblica. Os
pressupostos bíblicos decorrentes da fé no Deus revelado nas Escrituras é um claro
exemplo;[26]
- Na pós-modernidade, a
fé cristã ortodoxa, com a sua visão revelacional, passa a ser considerada tão
legítima quanto outras “verdades”;[27]
- Nos alerta quanto ao
perigo de impor ao texto as nossas pressuposições, impedindo que ele fale de modo
vivo e renovado às nossas circunstâncias históricas, políticas, sociais, religiosas
etc. Ela nos leva a reconhecer a dificuldade de evitarmos os possíveis condicionamentos
das nossas tradições, culturas, ideologias, filosofias e idiossincrasias.[28]
Apesar das contribuições acima
listadas, a hermenêutica pós-moderna não deve ser considera uma parceira da fé
cristã ortodoxa, e isso devido aos muitos conceitos contrários à referida fé. Dentre
os referidos conceitos aqui citados, de forma resumida, podemos citar:[29]
- A negação da
possibilidade de qualquer verdade objetiva, e com isso a rejeição da revelação
bíblica como verdade universal e imutável;
- A legitimação que faz
de qualquer eisegese como método não
apenas inevitável, mas desejável de interpretação. Tal atitude resulta no
relativismo, impedindo que o texto comunique o que tenciona comunicar;
- A suspeição da interpretação
de passagens bíblicas acaba se tornando também objeto de suspeição. Na medida
em que procura desmascarar outras ideologias a hermenêutica pós-moderna acaba
se tronando refém de sua própria ideologia, passando a condenar tudo que possa
contrariá-la;
- A interpretação pós-moderna,
de modo geral, exagera a distância cultural entre o autor e o leitor, e
dissocia de modo injustificável o autor do seu texto. A obra iluminadora do
Espírito Santo, revelada nas próprias Escrituras, é desconsiderada. A
dificuldade de interpretação se transforma em impossibilidade de interpretação.
Nenhum segmento
evangélico está livre da influência da hermenêutica pós-moderna. Ela afeta não
apenas a interpretação bíblica. A prática eclesial, a vida cristã comunal e
pessoal são também áreas afetadas. A doutrina, a teologia, a pregação, o
ensino, a música, o culto, a evangelização, a ética e a moral cristã, tudo é
afetado.
3. Considerações Finais
A hermenêutica na
condição de reflexão sobre os princípios que corroboram a interpretação textual
correta, era tradicionalmente um assunto para exegetas e filólogos. Contudo,
mais recentemente, a hermenêutica tornou-se uma preocupação dos filósofos, que
desejam entender não o que este ou aquele texto significa, mas o que significa
entender. A própria filosofia foi sugerida como um tipo de interpretação.[30] Na perspectiva da teoria
literária, não podemos mais limitar a interpretação à tarefa prática de obter o significado dos
textos, mas precisamos incluir a tarefa política
de situar o intérprete.[31]
Para Clark, a hermenêutica,
como disciplina, é tão misteriosa e turbulenta quanto sempre foi e é impossível
predizer a forma futura que adquirirá e até mesmo se continuará a existir.[32] Se tal visão é pessimista
ou realista, o tempo dirá. Um vislumbre de otimismo também é deixado por Clark,
e se relaciona com a possibilidade do surgimento entre os estudiosos da Bíblia de
outro Lutero que possa redimir a hermenêutica.
No desejo de nos tornarmos
aceitáveis pela erudição acadêmica universitária contemporânea, corremos o
risco de nos tornarmos acríticos e seduzidos pelos aplausos da academia
pós-modernizada. A busca por relevância entre os leitores e ouvintes
contemporâneos, embora legítima, não pode comprometer a verdade. A ênfase
exagerada nos aspectos subjetivos da interpretação bíblica (experiência, êxtase,
intuição etc.), em detrimento dos aspectos objetivos histórico-gramaticais do
texto, precisa ser considerada com muita prudência, inteligência e coerência.[33] A sabedoria que vem do
alto, a humildade, o temor reverente, a oração e a dependência do Espírito devem
continuar fundamentando e norteando todo o nosso pensar e fazer hermenêutico.
[1] O
conceito de relativismo na pós modernidade implica na crença da impossibilidade
de verdades absolutas, moral universal, etc. Cada um é possuidor e detentor da sua própria verdade
e moral. Tudo é relativo, inclusive a maneira de se interpretar as Escrituras e
o sentido de um texto bíblico.
[2] ANGLADA,
Paulo. Introdução à hermenêutica
reformada: correntes históricas, pressuposições, princípios e métodos linguísticos.
Ananindeua, PA: Knox Publicações, 2016, p. 23.
[3]VANHOOZER,
Kevin. Há um significado neste texto?:
interpretação bíblica: os enfoques contemporâneos. Tradução de Àlvaro Hattnher.
São Paulo: Editora Vida, 2005, p. 447.
[4]
BRAY, Gerald. História da interpretação
bíblica. Tradução de Daniel Hubert Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2017, p.
473.
[5] ANGLADA,
ibid., p. 41.
[6] LOPES,
Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus
intérpretes: uma breve história da interpretação. São Paulo: Cultura
Cristã, 2004, p. 217-219.
[7]
VANHOOZER, ibid., p. 480.
[8] DOCKERY,
David S. Hermenêutica contemporânea:
à luz da igreja primitiva. Tradução de Álvaro Hattnher. São Paulo: Editora
Vida, 2005, p. 161-162.
[9] LOPES,
ibid., p. 220.
[10]
BRAY, ibid., 473.
[11]
ANGLADA, ibid.
[12] LOPES,
ibid., p. 237.
[13] KÖRTNER,
Ulrich H. J. Introdução à hermenêutica teológica. Tradução de Paul Tornquist.
São Leopoldo, RS. Sinodal/EST, 2009, p. 99-100.
[14] Ibid.
[15] Ibid.
[16]
DANIEL, Silas. A sedução das Novas Teologias. Rio de Janeiro: CPAD, 2007, p.
77.
[17]
ANGLADA, ibid., p. 43.
[18]
LOPES, ibid., p. 220.
[19]
Ibid.
[20]
Ibid.
[21]
Ibid., p. 222.
[22]
Ibid., p. 234.
[23] O
ceticismo é um pensamento filosófico que afirma que o ser humano não pode atingir
nenhuma certeza a respeito da verdade. É um procedimento intelectual de dúvida
permanente.
[24]
BRAY, ibid., p. 478, 493.
[25] VANHOOZER,
ibid., p. 25
[26]
ANGLADA, ibid., p. 45.
[27]
Ibid.
[28]
Ibid.
[29]
Ibid., p. 46.
[30] VANHOOZER,
Ibid., p. 23-24.
[31]
Ibid., p. 24.
[32] CLARK,
Greg. A hermenêutica geral. In:
McKNIGHT, Scot; OSBORNE, Grant R. Faces
do Novo Testamento: um exame das pesquisas mais recentes. Tradução de Lena
Aranha. Rio de Janeiro: CPAD, 2018, p. 127.
[33]
ANGLADA, ibid., p. 47-48.
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