Rompendo com o abuso das
interpretações bíblicas alegóricas, o método histórico-gramatical foi
desenvolvido pelos Reformadores, que estavam interessados em chegar ao sentido
óbvio, claro e simples das Escrituras. A observação das questões gramaticais e
do contexto histórico do autor e de seus leitores originais deveriam ser
consideradas. A necessidade da iluminação do Espírito não foi descartada, visto
que as Escrituras eram inspiradas por Deus. Ninguém poderia interpretar a
mensagem da Bíblia sem o auxílio e a ação iluminadora do Espírito. Os
Reformadores se preocuparam em determinar a intenção do autor, que seria o
sentido pretendido por Deus. As interpretações do passado que concordavam com
as Escrituras não foram desprezadas. O método histórico-gramatical prevaleceu
na igreja após a Reforma, e foi adotado pelo protestantismo ortodoxo.[1] Os métodos de análise
textual desenvolvidos pelos Reformadores são usados ainda hoje, e protestantes conservadores
continuam prestando atenção neles como fonte de inspiração.[2] Para Paulo Angrada:
Trata-se de um método extremamente
frutífero, consistente com as pressuposições bíblicas quanto à própria natureza
das Escrituras, que emprega princípios gerais e métodos linguísticos e
históricos coerentes com o caráter divino-humano da Bíblia.[3]
Em seus estágios de
desenvolvimento, o pentecostalismo também adotou o método histórico-gramatical.
Não tenho dúvidas que a
experiência tem um papel fundamental na interpretação bíblica pentecostal.
Autores como Craig S. Keener afirmam isso, mas de forma bastante equilibrada:
A espiritualidade pentecostal sempre leu
as Escrituras experiencialmente [...]. Ninguém se aproxima de um texto sem
pressuposições, geralmente moldadas por instrução ou experiências passadas
[...]. Experiências contemporâneas, no entanto, podem nos ajudar a ouvir o
texto bíblico de maneiras que ressoam seus valores [...]. Experiências
semelhantes às das Escrituras muitas vezes tornam as Escrituras mais críveis ou
próximas a nós do que elas parecem para aqueles que não têm essas experiências
[...]. A experiência a muito tempo tem moldado a interpretação.[4]
Keener não propõe com isso uma
interpretação bíblica meramente experiencial ou subjetiva. Ele não descarta a
importância da análise histórico-gramatical na busca pelo sentido do texto e
intenção autoral:
Ávidos por enfatizar a experiência dos
leitores, alguns críticos hoje negligenciam a importância fundacional do
significado antigo [...]. O significado antigo, canônico, precisa ser a âncora
e o árbitro das alegações para interpretar o texto hoje [...].[5]
Uma postura pentecostal
extremada é relatada por Keener:
Um estudioso pentecostal, aparentemente
usando de forma prescritiva uma descrição da prática pentecostal popular,
sugere que um entendimento mais pleno da Bíblia não é especialmente desejável,
que o “encontro” é preferível à “exegese”, que os “leitores espiritualizantes”
só precisam de “pouco interesse [...] pelo significado superficial do texto” ou
atenção “à intenção original do autor”. Segundo essa perspectiva, a
hermenêutica pentecostal se opõe, de modo antagonístico, à apreciação do texto
por seus próprios méritos e sugere que os “pentecostais estão infinitamente
menos interessados naquilo que” os textos significam para seus leitores
originais do que em como os textos nos desafiam hoje. O autor vai tão longe a
ponto de sugerir, embora não de modo completamente exagerado, que, “agora que
os estudiosos progressistas” acertaram o Golias da “crítica
gramático-histórica” os Davis pentecostais devem terminar o trabalho cortando a
cabeça de Golias.[6]
Pode se observar na presente
citação, uma sugestão implícita de ruptura com o método histórico-gramatical
por parte de alguns “pentecostais progressistas”. A discussão sobre o que o
texto significou no passado, em seu contexto de origem é inevitável. Os
aspectos linguísticos e históricos não devem ser descartados:
Sem um fundamento comum – não somente
nas palavras do texto, mas no que essas palavras significavam em seus contextos
cultural, situacional e autoralmente moldados – pode-se fazer com que qualquer
texto diga praticamente qualquer coisa [...]. Descobrir “o significado e a
intenção originais” de um texto é o objetivo do método histórico-gramatical
[...]. Alguns associam a intenção autoral com “uma hermenêutica racionalista
iluminista” ou com “o método histórico-crítico”. No entanto, os intérpretes claramente
já usavam “exegese histórico-gramatical” antes do domínio da crítica histórica
moderna.[7]
Diversos autores e eruditos
pentecostais, entre eles Robert P. Menzies, também estão a favor de uma
hermenêutica pentecostal que considere o método histórico-gramatical:
Os pentecostais e os evangélicos (não
pentecostais) ressaltam a importância da intenção do autor bíblico e procuram
entender a passagem à luz de seu contexto histórico e literário. O significado
histórico é importante para ambos os grupos. A despeito dessas importantes
áreas de congruência, há dois pressupostos (muitas vezes inconscientes) que
moldam as abordagens evangélicas (não pentecostais) a Lucas-Atos que os
pentecostais rejeitam. O primeiro pressuposto está associado com a tendência
evangélica de rejeitar a narrativa de Atos e a igreja apostólica que o Livro descreve
como modelo para a igreja hoje. [...] O segundo pressuposto é consequência da
tendência evangélica de reduzir a teologia do Novo Testamento à teologia
paulina.[8]
Roger Stronstad, nos fala de
princípios hermenêuticos comuns à interpretação protestante evangélica de toda
a literatura bíblica, independente do gênero, onde inserir o livro em seu
contexto histórico original faz parte. Nesse sentido, Lucas-Atos devem ser
inseridos nos contextos histórico, político, religioso e social do mundo
greco-romano.[9]
Para Gordon Fee, a exegese
significa que se está buscando a própria intenção de um autor naquilo que foi
escrito:
A
exegese é o estudo cuidadoso e sistemático da Escritura para descobrir o
significado original, o significado pretendido. A exegese é basicamente uma
tarefa histórica. É a tentativa de escutar a Palavra do mesmo modo que os
destinatários originais devem tê-la ouvido; descobrir qual era a intenção
original das palavras da Bíblia. Essa tarefa que com frequência exige ajuda do “especialista”,
aquela pessoa cujo treinamento a ajudou a conhecer bem o idioma e as
circunstâncias dos textos no seu âmbito original.
Segundo Gordon L. Anderson,
seis questões chaves devem ser consideradas no processo interpretativo das
Escrituras. São elas: o método exegético, o papel do Espírito Santo, gênero, experiência
pessoal, experiência histórica e pressupostos teológicos.[10]
Para Anderson, os Pentecostais,
e outros que interpretam a Bíblia de modo semelhante a eles, estruturam os seis
elementos básicos de uma hermenêutica padrão de forma bem diferente de outros
evangélicos. Tal hermenêutica pentecostal seria a combinação entre uma hermenêutica
centrada no leitor (experiência), sem abrir mão do alto compromisso com a
verdade e autoridade da Bíblia (investigação).
Mesmo assim, o significado
pretendido pelo autor original ainda é considerado primário, e os significados
obtidos através do estudo histórico-gramatical são vistos como objetivos a
serem alcançados. No entanto, uma compreensão adequada desses significados não
pode ser obtida sem lidar apropriadamente com as outras cinco partes da estrutura
hermenêutica. Uma hermenêutica pentecostal ajuda substancialmente nesse
processo.
Apesar da impossibilidade de
reconstruir perfeitamente o significado original (objeção de que a intenção do
autor é irrecuperável):
[...] o texto significa no mínimo o que
significava para o autor inspirado, que entendia a sua própria língua, as
expressões idiomáticas e alusões culturais melhor do que nós. Oferecer
reconstruções históricas da forma mais responsável possível (dados os limites
das evidências e dos nossos próprios horizontes) é um objetivo racional que não
precisa ser descartado simplesmente porque não pode ser alcançado
perfeitamente.[11]
Apesar de algumas divergências
entre os eruditos pentecostais na aplicação do método histórico-gramatical, o
método em si continua sendo relevante para muitos destes, onde a possibilidade de descartá-lo
está descartada, pelo menos enquanto escrevo estas linhas.
Ênfase no autor, texto ou
leitor? Horizonte bíblico ou contemporâneo? Razão humana ou iluminação do
Espírito? Cognição ou experiência? Teorização acadêmica ou aplicação piedosa? Todas
as vezes que um destes aspectos hermenêuticos é demasiadamente enfatizado em
detrimento dos demais, um novo problema tende a surgir.
Não seriam cada um destes
aspectos hermenêuticos (ou ênfases hermenêuticas) convergentes, em vez de
divergentes? Não seriam complementares em vez de excludentes? Na hermenêutica o
equilíbrio é também necessário e desejável.
Não há nada de errado em se
buscar novos métodos que atendam os leitores e exegetas pentecostais. Contudo,
os tais métodos precisam ser expostos, aplicados e testados por seus
proponentes, para somente após a sua comprovada eficácia, serem aprovados,
aceitos e difundidos na comunidade pentecostal.
No momento, continuo
utilizando o método histórico-gramatical (sem abrir mão da cooperação do
Espírito e do valor da experiência), que muito me tem servido (e a tantos
outros), na desafiadora e maravilhosa tarefa de interpretar as Escrituras, ao
mesmo tempo em que me mantenho aberto para outras possibilidades metodológicas,
que sejam comprovadamente fiéis na busca pelo sentido original do texto e pela
intenção autoral, e que considerem a Bíblia com todas as suas singularidades na
condição de Palavra de Deus.
[1]
LOPES, Augustus Nicodemus Lopes. A Bíblia
e seus intérpretes: uma breve história da interpretação. São Paulo: Cultura
Cristã, 2004., p. 159-167.
[2] BRAY,
Gerald. História da Interpretação Bíblica. Tradução de Daniel Hubert Kroker.
São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 191.
[3]
ANGLADA, Paulo. Introdução à Hermenêutica Reformada: correntes históricas,
pressuposições, princípios e métodos linguísticos. Ananindeua, PA: Knox
Publicações, 2016, p. 101.
[4]
KEENER, Craig S. A hermenêutica do
Espírito: lendo as Escrituras à luz do Pentecostes. Tradução de Daniel
Hubert Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 68-70.
[5]
Ibid., p. 211.
[6]
Ibid., p. 221.
[7]
Ibid., p. 223, 226.
[8]
MENZIES, Robert P. Pentecostes: essa
é a nossa história. Tradução de Luís Aron de Macedo. Rio de Janeiro: CPAD,
2017, p. 23-24.
[9]
STRONSTAD, Roger. Teologia lucana sob
exame: experiência e modelos paradigmáticos em Lucas-Atos. Tradução de
Celso Roberto. Natal, RN: Carisma, 2018, p. 29, 31.
[10]
ANDERSON, Gordon L. Hermenêutica Pentecostal,
disponível em enrichentjournal.ag.org, acessado em 28/03/2019.
[11]
KEENER, ibid., p. 245.
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