Sempre que um estudo no
sexto mandamento é realizado, surge uma série de questões complexas, polêmicas
e controversas.
O problema já começa quando
se analisa a melhor tradução para o verbo hebraico ratsah que em nossas versões ganha um sentido
geral para “matar”, quando na realidade o seu significado é específico. O Capítulo
20.23 de Êxodo no hebraico é lo’ tirtsah (não matarás).
No Dicionário Vine o verbo
hebraico ratsah, de onde se deriva tirtsah, é traduzido por “matar,
assassinar, destruir”. O Termo aparece principalmente no material legal (Lei),
e nos profetas é usado para descrever o efeito da injustiça e ilegalidade em
Israel (Os 4.12; Is 1.21; Jr 7.9). Na Septuaginta a tradução é phoneúseis (assassinarás).[1] Louw e Nida traduzem phoneús por “alguém que mata outra
pessoa, assassino, homicida”.[2]
Baco, ao comentar sobre o verbo ratsah, diz:
[...]
não é o verbo comum, neutro “matar”. Sempre fala de homicídio, culposo ou não.
O mandamento enfatiza a gravidade do crime. Gênesis 9.6 explica: “Quem derramar
sangue do homem, pelo homem seu sangue será derramado; porque à imagem de Deus
foi o homem criado”. No caso das cidades de refúgio este verbo é aplicado ao
homicídio sem intenção dolosa (Nm 35.16, 17). Mesmo assim, a separação destas
cidades para esse fim, enfatiza a gravidade do caso [...].[3]
O Dicionário Internacional
de Teologia do Antigo Testamento descreve ratsah da seguinte maneira:
Ratsah
é uma raiz exclusivamente hebraica. Não possui nenhum cognato claramente
identificável nas línguas da época. A raiz ocorre 38 vezes no AT, com 14
ocorrências em Números 35. Ela aparece pela primeira vez nos Dez Mandamentos
(Êx 20.13). Naquele texto importante aparece no qal, junto com o advérbio de negação “não assassinarás”, que é uma
tradução mais exata do conhecido e demasiadamente genérico “não matarás” [...].
As inúmeras ocorrências em Números 35 tratam do estabelecimento das cidades de
refúgio para onde podiam fugir aqueles que matassem alguém acidentalmente.
Números 35.11 deixa plenamente claro que o refúgio existia para as pessoas
culpadas de mortes acidentais, não premeditadas. Isso deixa claro que ratsah
se aplica igualmente tanto a casos de assassínios premeditados quanto a mortes
resultantes de outras circunstâncias, que em direito são chamadas de “homicídio
culposo”. A raiz também descreve a morte por vingança (Nm 35.27, 30) e o
assassínio motivado (2 Rs 6.32) [...]. Em um único caso em todo o AT a raiz
designa a morte de um homem por um animal (Pv 22.13). Mas mesmo nesse contexto
a ideia básica é a da hediondez de tal acontecimento. Em todos os demais casos
do uso de ratsah, é o crime de um homem contra se semelhante e a censura
divina que estão em proeminência.[4]
O Dicionário
Hebraico-Português & Aramaico-Português traduz ratsah por “assassinar”.[5]
Uma vez conhecida a melhor
tradução para o hebraico ratsah, convém expor que o termo
envolve questões e discussões que incluem temas como guerra, pena de morte,
suicídio, eutanásia e aborto.
GUERRAS
E DEFESA PESSOAL
Pode um cristão ir á guerra
e matar? Os ativistas dizem que sim, os pacifistas dizem que não, e os seletivistas
afirmam que em alguns casos sim.[6] Geisler afirma que a base
bíblica para se defender com armas (uma pessoa ou um país) de atos injusto é
Lucas 22.36:
Então,
lhes disse: Agora, porém, quem tem bolsa, tome-a, como também o alforje; e o
que não tem espada, venda a sua capa e compre uma. (ARA)
Geisler argumenta que o uso
de espadas por motivos religiosos (defender-se de perseguição por causa da fé) não
foi recomendado por Jesus, mas o uso por motivos civis era permitido:
Aqui
parece haver a sanção de Jesus ao uso justificável de um instrumento de morte
na defesa contra um agressor injusto. Ou seja: Jesus ordenou o uso da espada
como meio de auto-defesa.[7]
Alguns comentaristas
bíblicos não interpretam literalmente o uso da espada como instrumento de
defesa pessoal no caso aqui citado.
Geisler ainda apoia o ponto
de vista seletivista no caso da participação do crente em guerras justas citando
o caso de Abraão em Gênesis 14, e de Davi em 1 Samuel 23.1-2.
No caso da defesa pessoal, Geisler
fundamenta-se ainda no fato de Paulo ter aceito escolta armada do Estado em
Atos 23.23-24, diante da conspiração dos judeus para matá-lo (At 23.12-13ss).[8]
Em termos práticos, no meu
entendimento, se aceitamos a segurança armada da polícia estadual ou federal,
não podemos censurar as leis que autorizam o porte legal de armas ao cidadão. Particularmente,
não andaria armado mesmo que devidamente legalizado.
PENA
DE MORTE OU CAPITAL
Eis aqui outra questão
bastante discutida, e onde as opiniões mais uma vez divergem. Acompanho o
posicionamento do pastor Elinaldo Renovato, no entendimento de que a Bíblia respalda
a pena de morte em caráter de exceção (Gn 9.6; Js 7.15; Êx 21.12-16, 23-24;
22.19-20; 35.2; Lv 18.22; 20.10-21; 24.11-14; Nm 15.32-36; Dt 17.12; 21.18-21;
Mt 5.21,22; Rm 13.1-4), mas que o cristão deve preferir apoiar penas alternativas,
como o caso da prisão perpétua, onde o criminoso tem a oportunidade de se
recuperar, e até de se tornar um crente salvo em Cristo Jesus.[9]
No caso de um
policial cristão no estrito exercício de suas funções matar o agressor, quer em defesa própria ou de outrem quando a vida destes estiver em risco, o mesmo
não peca, pois exerce a autoridade lhe delegada legitimamente por Deus para o
bem maior e comum da sociedade (Rm 13.4). É claro que evitar a morte do agressor sem por a própria vida em risco é a melhor, mas nem sempre possível alternativa.
EUTANÁSIA,
SUICÍDIO E ABORTO
A eutanásia (literalmente
boa morte) é definida por alguns como a permissão para morrer ou matar misericordiosamente.
É a partir do século XVI e XVII que se começa a diferenciar a eutanásia ativa
da eutanásia passiva. A ativa envolve a implementação de uma ação médica
positiva com a qual se acelera a morte de um doente ou se põe fim à sua vida. Na
eutanásia passiva ou negativa as ações positivas não são aplicadas ao doente, ou
são suspensas as medicações ou a manutenção de equipamentos e aparelhos ligados.[10]
A complexidade da questão é
descrita por Geisler da seguinte maneira:
O
que o cristão deve fazer a um homem preso, sem esperança, num avião em chamas
que implora para ser fuzilado? A maioria das pessoas humanitárias mataria a
tiros um cavalo preso num celeiro em chamas. Por que um homem não pode ser
tratado de modo tão humanitário quanto um animal? Ou, quando um nenê
monstruosamente deformado nasce, e repentinamente para de respirar, o médico
está moralmente obrigado a ressuscitá-lo? Não seria mais misericordioso
deixá-lo morrer? Outro caso: digamos que um homem com uma doença incurável está
sendo mantido vivo somente com uma máquina. Se a tomada for desligada, morrerá;
se viver, será apenas artificialmente num tipo de existência “vegetativa”. Qual
é a obrigação moral do médico? Estas situações e muitas outras como elas
focalizam o problema ético de tirar a vida. Quando, e se, tirar uma vida é moralmente
justificável?[11]
Após expor alguns argumentos
favoráveis à eutanásia, Geisler destaca o fato de que a vida humana possui
valor intrínseco e não deve ser tirada por outro ser humano mesmo que a vítima
o peça. Somente Deus detém o direito de dar e tirar a vida. Há muitos meios,
excluindo a morte, para aliviar o sofrimento. Lembra também que as
possibilidades do milagre e de descobertas no campo científico que venham restaurar o doente, por remotas que sejam,
estão sempre presentes.[12]
Renovato destaca mais uma
vez as complexidades éticas envolvidas na questão, se posicionando, no caso da
eutanásia ativa, contrário à prática.[13] No caso da eutanásia
passiva, cita um dos pontos da Declaração da Congregação para a doutrina da Fé,
com o posicionamento oficial da Igreja Católica sobre a questão, que é
contrária à prática.[14] Seguimos também os
referidos posicionamentos.
No caso do suicídio,
seguimos a posição de Geisler, que entende que o suicídio quebra o sexto
mandamento. O suicídio é o assassinato de si mesmo. A questão também não é
muito simples, como, por exemplo, no caso de pessoas que se suicidam em estado
de loucura ou de outras graves patologias psíquicas. Renovato cita Gilbert
Meilaender, que afirma ser possível condenar o suicídio sem, contudo, condenar
o suicida.[15]
Em se tratando do aborto, o
mesmo é tolerado por diversos cristãos apenas no caso da vida da mãe estar em
alto risco. Trata-se de um dilema ético cuja decisão se fundamenta no
hierarquismo, ou seja, decidir pelo bem maior. No caso aqui exposto, aplica-se
o princípio de que uma pessoal real (a mãe) tem mais valor do que uma pessoa em
potencial (o embrião, o não-nascido).[16]
Para quem achava que estudar
o sexto mandamento seria algo muito simples, fica aqui provado o contrário.
Para maiores discussões e aprofundamento no conhecimento das questões aqui
exposta, além das obras citadas, recomendo:
- Fundamentos da Bioética
Cristã Ortodoxa, de H. Tristram Engelhardt Jr., Edições Loyola.
- Manual de Bioética, de
Elio Sgreccia, Edições Loyola.
- Bioética, um Guia para os
Cristãos, de Gilbert Meilaender, Vida Nova.
- Lexicon: termos ambíguos e
discutidos sobre família, vida e questões éticas, Edições CNBB.
Altair
Germano – Pastor, teólogo, pedagogo, escritor e conferencista.
Atualmente é o 1º Vice-Presidente da Assembleia de Deus em Abreu e Lima-PE
(COMADALPE), Vice-Presidente do Conselho de Educação e Cultura da Convenção
Geral das Assembleias de Deus no Brasil – CGADB.
[1]
VINE, W. E. et al. Dicionário Vine. , 2 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2003, p. 180.
[2]
LOUW, Johannes; NIDA, Eugene. Léxico grego-português do Novo Testamento:
baseado em domínio semânticos. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013,
p. 214.
[3] BACON,
Betty. Estudos na Bíblia Hebraica: exercícios de exegese. 2 ed. São Paulo: Vida
Nova, 2005, p. 128.
[4] HARRIS,
R. Laird et al. Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p.
1451.
[5] Dicionário
Hebraico-Português & Aramaico-Português. São Leopoldo/Petrópolis:
Sinodal-Vozes, 2003, p. 233.
[6]
GEISLER, Norman L. Ética Cristã: alternativas e questões contemporâneas. São Paulo:
Vida Nova, 1984, p. 137-152.
[7]
Ibid., p. 147.
[8]
Ibid.
[9] LIMA,
Elinaldo Renovato de. Ética Cristã: confrontando as questões morais do nosso
tempo. Rio de Janeiro: CPAD, 2002, p. 121-129.
[10]
FERNANDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética. São Paulo: Paulinas,
2000, p. 86.
[11]
GEISLER, Norman L. Ibid., p. 197.
[12]
Ibid., p. 199-200.
[13]
LIMA, Elinaldo Renovato de. Ibid., p. 138.
[14]
Ibid., p. 140.
[15]
Ibid., p. 141.
[16]
GEISLER, Norman L. Ibid., p. 101.
Um comentário:
sempre muito edificante passar nesse blog. visitem também http://josueasevedo.blogspot.com.br/
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