Por vários motivos as denominações
evangélicas adotam determinada versão do texto bíblico como “oficial” para os
seus atos litúrgicos e fins doutrinários. Nas Assembleias de Deus do Brasil,
essa versão é a Almeida Revista e Corrigida (ARC), e pelo que tudo indica ainda
se mantém assim em razão do “costume” com o referido texto.
Diante da adoção de uma
versão oficial, o que me assusta, é a quantidade de obreiros e demais membros
em geral, que nunca se perguntaram ou questionaram sobre a razão de tal
escolha, e mais, nunca compararam a ARC com outras versões, nem tampouco, ao
perceberem divergências textuais com outras versões, não foram adiante para
entender a razão de tais divergências, e se isso de alguma forma afetava
questões de ordem doutrinária e teológica.
Quando se analisa
criticamente e seriamente determinada versão da Bíblia, a referida versão se
fortalece como o “melhor texto”, ou se percebe a necessidade de adotar em seu
lugar uma versão mais fiel aos originais, ou ainda chega-se a conclusão de que se
pode ter esta ou aquela versão no mesmo nível de confiabilidade em relação aos
manuscritos originais, e consequentemente com a melhor fidelidade possível aos
autógrafos (textos produzidos pelas mãos dos escritores bíblicos).
Nossa proposta se relaciona
com o interesse de buscar o melhor texto (ou melhores textos) para a
atualidade, partindo da análise comparativa entre os principais textos críticos
utilizados para tradução do Novo Testamento na atualidade (Textus Receptus e Texto Crítico), analisando alguns casos nas
traduções e versões para a língua portuguesa, com ênfase na ARC e ARA.
1º
CASO – Mateus 17.21
τοῦτο δὲ τὸ γένος οὐκ ἐκπορεύεται εἰ μὴ ἐν προσευχῇ καὶ
νηστείᾳ (Textus Receptus, Stephanus)
Mas esta casta de demônios
não se expulsa senão pela oração e pelo jejum. (ARC)
[Mas esta casta não se
expele senão por meio de oração e jejum.] (ARA)
ANÁLISE
DO TEXTO GREGO
O Novo Testamento Grego (4ª
Ed.), que em sua apresentação informa que: “Hoje,
pode-se afirmar que, a menos que se descubram novos manuscritos, o estudo do
texto do Novo Testamento Grego está concluído. E os resultados desse trabalho
aparecem na edição que o leitor tem, agora, em mãos.”[1], omite o texto do
versículo 21, que aparece no Textus Receptus,
conforme acima transcrito.
Por essa razão, a ARA coloca
o texto entre parêntesis, indicando que o mesmo não fazia parte dos manuscritos
gregos, visto que tal versão toma como base o Novo Testamento Grego, enquanto a
ARC traduz normalmente, pois tal versão teve o Textus Receptus como base.
Kurt e Barbara Aland,
afirmam que devido ao prestígio e significado do jejum na Igreja antiga, e
também no período monástico de toda a idade Média, a leitura mais breve (com a
omissão) não teve tanto apoio, mas que a ausência do v. 21, isto é, a sua não
pertença ao texto original de Mateus é mais do que suficientemente comprovada em
diversos manuscritos, e que se esse texto tão popular tivesse constado do
original, ninguém teria ousado omiti-lo.[2]
Mateus 17.21 teria sido a
reprodução posterior de Marcos 9.29, que também, por sua vez, teria sofrido o
acréscimo posterior do termo “e jejum”.
Verifique que na ARA a palavra “e jejum” aparece entre colchetes no final de
Marcos 9.29. A ARC não faz observação alguma.
Sobre a passagem de Mateu
17.21, Omanson comenta:
Não
existe razão suficiente que poderia ter levado copistas a omitir esse versículo
numa variedade tão grande de manuscritos, caso fosse, originalmente, parte do
texto de Mateus. Com frequência, copistas inseriam num Evangelho material que
se encontra em outro. Neste caso, parece que o acréscimo de “Mas esse tipo não
sai senão por meio de oração e jejum”, que aparece na maioria dos manuscritos,
foi tirado do paralelo em Mc 9.29.[3]
ANÁLISE
TEOLÓGICA
Passaremos a citar a posição
de teólogos e comentarista bíblicos sobre o texto em questão.
O teólogo alemão Rienecker,
em seu comentário do evangelho de Mateus, reconhece o fato do v. 21 não constar
no texto original editado por Nestle, omitindo assim qualquer comentário sobre o
texto.[4]
D. A. Carson, Ph.D. pela
Universade de Cambrige, e professor de Novo Testamento na Trinity Evangelical
Divinity School, Deerfiel, Ilinois, EUA, comenta que o texto do v. 21 se trata
de:
[...]
informação omitida por uma poderosa combinação de testemunhos. É obviamente uma
assimilação do paralelo sinótico de Marcos 9.29. Não motivo evidente de por
que, se ela for original, devia ser omitida; e a harmonização textual é, de
forma bem demonstrável, um processo secundário.[5]
O Comentário Bíblico de Moody,
editado por Pfeiffer e Harrison, diz que “O
versículo 21 foi omitido nos melhores manuscritos, sendo uma interpolação de
Mc. 9.29”.[6]
Champlin, em seu comentário,
destaca não haver razão para a passagem do v. 21 ter sido omitida, caso a mesma
estivesse presente originalmente em Mateus, e considerando que os copistas com
frequência inseriam material derivado de outro evangelho, parece que na maioria
dos manuscritos foi assimilada do paralelo de Marcos 9.29.[7]
David H. Stern, judeu
messiânico e erudito bíblico, diz que “Os
manuscritos que acrescentaram o v. 21 provavelmente o pegaram emprestado de
Marcos 9.29.”[8]
Samuel Pérez Millos, Mestre
em teologia pelo Instituto Bíblico Evangélico a Espanha, comenta:
Este
versículo não aparece nos mais confiáveis manuscritos, mas somente em códices
de pouca confiança. Com toda certeza foi copiado de Marcos 9.29, sendo também
que ali encontramos “jejum”, que inicialmente não estava nos manuscritos.[9] (tradução do autor)
As obras “Comentário Bíblico
Africano” (Mundo Cristão), “Comentário al Nuevo Testamento de William Barclay”
(Editora Clie) e “Vincent: estudos no vocabulário grego do Novo Testamento”
(CPAD), não trazem nenhuma observação ou comentário sobre o referido versículo.
Robertson, cujo comentário
de Mateus e Marcos foi publicado pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus
(CPAD), e aprovado pelo Conselho de Doutrina da CGADB, não comenta Mateus
17.21, mas, em se tratando de Marcos 9.29 diz:
Esta
casta não pode sair com coisa alguma, a não ser com oração (Τοῦτο τὸ γένος ἐν οὐδενὶ δύναται ἐξελθεῖν εἰ μὴ
ἐν προσευχῇ). A adição de “e jejum” não aparece nos dois
manuscritos gregos mais antigos (א e B). É claramente uma adição recente para
ajudar a explicar o fracasso dos nove discípulos. Mas é desnecessária e também
infiel. Foi a oração que os nove discípulos não fizeram. Não tiveram poder,
porque não tinham oração.[10]
Conforme Robertson, o “e jejum” de Marcos 9.29 (Καὶ νηστείᾳ),
não nos oferece bases sólidas para construirmos uma doutrina sobre a relação do jejum com a expulsão de demônios.
ANÁLISE PRÁTICA
Diante das questões aqui comentadas, como devem se posicionar os que
ensinam e pregam o Novo Testamento, diante dos textos de Mateus 17.21 e Marcos
9.29? Entendo que, partindo do pressuposto de que o texto do Novo Testamento
Grego é o mais confiável na atualidade (até que novas descobertas provem o
contrário), e sendo a base da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA),
incorrem num risco maior de se distanciarem dos originais, os que tomam a
versão Almeida Revista e Corrigida, e com base nela, e nos referidos textos,
elaboram doutrinas, ensinos e pregações.
Mateus 17.21 deve ser evitado, enquanto em Marcos 9.29, para discorrer
sobre o poder de expulsar demônios, a ênfase deve ser dada à oração.
Como continuaremos a observar nas próximas análises
comparativas entre as versões ARC e ARA, tendo como base as atuais evidências
científicas (e até que novas e melhores descobertas surjam), não recomendo a utilização de textos comprovadamente duvidosos no
ensino e na pregação do Novo Testamento.
[1] O
Novo Testamento Grego: com introdução em português e dicionário
grego-português. Barueri-SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.
[2]
ALAND, Kurt; ALAND, Barbara. O texto do Novo Testamento: introdução às edições
científicas do Novo Testamento Grego bem como à teoria e prática da moderna
crítica textual. Barueri-SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013, p. 310.
[3]
OMANSON, Roger L. Variantes textuais do Novo Testamento: análise e avaliação do
aparato crítico de “O Novo Testamento Grego”. Barueri-SP: Sociedade Bíblica do
Brasil, 2010, p. 27.
[4]
RIENECKER, Fritz. O Evangelho de Mateus: comentário esperança. Curitiba-PR: Editora
Evangélica Esperança, 1998, p. 306.
[5]
CARSON, D. A. O comentário de Mateus. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p.
459.
[6] PFEIFFER,
Charles F.; HARRISON, Everet (Ed.). Comentário Bíblico Moody: os Evangelhos e Atos.
São Paulo: Imprensa Batista Regular, 1987, p. 43.
[7]
CHAMPLIN, R.N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo: São
Paulo: Hagnos, 2002, p. 459, v. 1.
[8]
STERN, David H. Comentário Judaico do Novo Testamento. Editora Atos, 2008, p.
82.
[9]
MILLOS, Samuel Pérez. Comentário Exegético al texto griego del Nuelvo
testamento: Mateo. Barcelona, Espanha: Editora Clie, 2009, p. 1179.
[10]
ROBERTSON, A. T. Comentário Mateus & Marcos: à luz do Novo Testamento
Grego. Rio de Janeiro: CPAD, 2012, p. 459.
10 comentários:
Gosto da ARC por ter um texto mais arcaico. Me identifico com esse estilo literário antigo. Porém, reconheço a limitação dela e o grande auxílio que a ARA presta à interpretação biblica mais fiel.
Paz, Pastor Altair!
Tenho um exemplar do novo testamento judaico, e no capitulo 9 de Marcos e vs 44 e 46 não aparece. Nas traduções ARC aparece o termo: “Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga”. Lá esses dois versículos não são citados, seria mais um erro de traduções?
Paz, Pastor Altair!
Tenho um exemplar do novo testamento judaico, e no capitulo 9 de Marcos e vs 44 e 46 não aparece. Nas traduções ARC aparece o termo: “Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga”. Lá esses dois versículos não são citados, seria mais um erro de traduções?
Parabéns, pr Altair! Sou teólogo e membro da Assembléia, bom, sempre fiz alguns criticas a ARC, sim com base, contudo sempre houveram rejeição. Fiquei alegre ao ler seu comentários. Não devo esquecer que no passado fui um defensor da ARC por ser de nossa tradição.
Felicito ao nobre companheiro e amigo pastor Altair pela excelente reflexão sobre qual o texto original do Novo Testamento.
Desde março de 1983 sou leitor da Bíblia Almeida Revista e Atualizada (ARA), quando ganhei uma de presente por ocasião de minha conversão. De lá para cá a uso como minha Bíblia devocional. Acostumei-me com ela. Talvez a minha devoção fosse a uma outra versão, se em vez da Almeida Atualizada eu tivesse ganhado uma outra Bíblia.
Pois bem, sobre a questão: "Qual o Texto Original do Novo Testamento", acredito ser esse um debate que está longe de terminar.
Acredito que a Almeida Revista e Corrigida precisa de revisões a fim de que alguns problemas de tradução sejam resolvidos, mas não acredito que isso deva ser feito simplesmente porque sua tradução foi feita com base no Textus Receptus ou Texto Recebido. O texto da Almeida Revista e Atualizada que eu uso é fundamentada no texto da USB (Sociedade Bíblica Americana) que representa o chamado "Texto Eclético", preferido pelos críticos. A pergunta é: Qual o texto original do Novo Testamento? Será o texto Eclético ou o Receptus? Ninguém sabe! o Que sabemos é que possuímos mais de 5000 manuscritos gregos e apenas três dentre eles (Alexandrino, Vaticanus e Sinaíticus)são aceitos como as cópias mais antigas (IV século). Essa incerteza recebe apoio por parte de muitos crítico quando se passou a perceber que a teoria de Wescott-Hort se fundamentaram muitas vezes em critérios subjetivos. Daí porque até mesmo a nomeclatura para "Texto Neutro", usado para designar uma família de supostos textos primitivos vem sendo abandonada por muitos eruditos. Se o texto Receptus (Almeida Revista e Corrigida) tem problemas, o mesmo se pode dizer do texto Eclético (Almeida Revista e Atualizada). Vejamos, por exemplo, o que demonstrou o Dr Wilbur Pickering, PhD em Linguística pela Universidade de Toronto, Canadá e autor de uma crítica mordaz ao texto da UBS. Pickering é autor de THE IDENTITY OF THE NEW TESTAMENT TEXT (Identidade do Texto do Novo Testamento) e um dos colaboradores da edição do texto majoritário. Vejamos alguns problemas da Almeida Revista e Atualizada,feita a partir dos "manuscritos mais antigos".
1. Lucas 4.44
A Almeida Revista e Corrigida, seguindo o texto Receptus, grafa a palavra GALILEIA.
A Almeida Revista e Atualizad, seguindo o texto Eclético, grafa a palavra JUDEIA.
Prolema: JESUS ESTAVA NA GALILÉIA E, CONTINUOU LÁ, NÃO NA JUDEIA, COMO O CONTEXTO DEIXA CLARO.
A Versão americana NRSV (A Nova Versão Padrão Revisada),que segue o texto da UBDS ao pé da letra, estupra o texto ao traduzir: ASSIM ELE CONTINUOU PROCLAMANDO A MENSAGEM NAS SINAGOGAS DA JUDEIA. Se isso representa o que disse os originais ou que mais se aproxima dos originais, como quer Bruce M. Metzger, editor do texto da UBS, então os autógrafos tinham erros, o que é inaceitável.
2. Marcos 6.22
A Almeida Revista e Corrigida, seguindo o Textus Receptus, traz:
"A filha de Herodias"
O texto da UBS grafa: A FILHA DE HERODES.
Vendo o absurdo dessa tradução, a Almeida Revista e Atualizada abandonou aqui o texto da UBS (deixou de seguir o original?)para traduzir igual a Almeida Corrigida, que segue o Textus Receptus. Somente a tradução norte-americana NRSV, que é fiel em tudo, até nos erros,traduziu: HERODIAS, A FILHA DELE. Um absurdo. Basta fazer uma leitura rápida nos Evangelhos para ver que a moça era filha de Herodias, como diz a Almeida Revista e Corrigida.
Qual é o texto original do Novo Testamento? Acredito que há muita coisa ainda para ser esclarecida.
Pr. José Gonçalves
Pastor, O que o senhor acha da versão Almeida XXI(Vida Nova)?
Caro amigo e pastor José Gonçalves, vossa contribuição é de fundamental importância para uma reflexão sobre a necessidade de uma análise crítica no meio pentecostal das referidas versões e traduções. É claro que não temos um texto acabado e perfeito, mas creio que temos "um melhor texto", pois se não temos, acabamos caindo num certo "relativismo textual", onde as pesquisas desaguam no mar da incerteza.
Tenho informações que a 28ª edição de Aland já está pronta, e vamos aguardar as novidades textuais.
Enquanto isso, e apesar disso, temos o compromisso de analisar criticamente nossas versões, para que o máximo possível de certeza, e o mínimo possível de erros, possa ser um objetivo sempre presente e desejável.
Sinto a falta de tais debates no contexto pentecostal, em tempos onde temos pessoas altamente habilitadas para contribuir como o mesmo.
Abraços fraternos.
acho que não podemos desprezar a ARC, e fazer uma cruzada contra esse texto que foi a base da reforma protestante.
Poderia me dizer qual códice o David H. Stern usou na Bíblia judaica?
O assunto seria de Simão era leproso ,ex-leproso ou fabricante de jarros(Mt 26:6).
Att.
Prezado Pr. Altair Germano,
Continues firme e sereno. Estás sendo conduzido por Deus, o Senhor.
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