Já há algum tempo a
comunidade evangélica brasileira, principalmente os ensinadores, pregadores,
professores e estudantes da Bíblia, foram surpreendidos por afirmações relacionadas
ao texto sagrado, no que diz respeito a autenticidade de algumas narrativas
bíblicas, que até então eram tidas como parte do texto original, e que foram
transcritas fielmente pelos copistas. O texto de João 5.3b-4 é um destes casos.
Iniciaremos nossa abordagem
sobre o assunto citando o texto do versículo 4 em diversas traduções e/ou
versões disponíveis:
Grego
αγγελος γαρ κατα καιρον
κατεβαινεν εν τη κολυμβηθρα και εταρασσεν το υδωρ ο ουν πρωτος εμβας μετα την
ταραχην του υδατος υγιης εγινετο ω δηποτε κατειχετο νοσηματι (Textus Receptus)
Espanhol
Porque
un ángel descendía á cierto tiempo al estanque, y agitaba el agua; y el que
primero descendía en el estanque después del movimiento del agua, quedaba sano
de cualquier enfermedad que tuviese. (Reina Valera, Sociedades
Bíblicas Unidas, 1960)
Português
Porque
um anjo descia em certo tempo ao tanque, e agitava a agua; e o primeiro que ali
descia, depois do movimento da agua, sarava de qualquer enfermidade que tivesse.
(Almeida Revista e Corrigida, Depósito das Escrituras Sagradas, Lisboa, 1903)
Porquanto
um anjo descia em certo tempo ao tanque e agitava a água; e o primeiro que ali
descia, depois do movimento da água, sarava de qualquer enfermidade que tivesse.
(Almeida Revista e Corrigida, 4ª ed., Sociedade Bíblica do Brasil, 2009)
Porque
o anjo do Senhor descia, de vez em quando, à piscina e agitava a água; o
primeiro, então, que aí entrasse, depois que a água fora agitada, ficava
curado, qualquer que fosse a doença. (A Bíblia de Jerusalém, Paulus,
1985)
De
vez em quando descia um anjo do Senhor e agitava as águas. O primeiro que
entrasse no tanque, depois de agitadas as águas, era curado de qualquer doença
que tivesse. (Nova Versão Internacional, Sociedade
Bíblica Internacional, 2000)
[Esperando
que se movesse a água. Pois descia um anjo em certo tempo ao tanque e agitava a
água; e o primeiro que entrava no tanque, depois de se mover a água, ficava
curado de qualquer doença que tivesse.] (Tradução Brasileira, Sociedade
Bíblica do Brasil, 2010)
[esperando
que se movesse a água. Porquanto um anjo descia em certo tempo, agitando-a; e o
primeiro que entrava no tanque, uma vez agitada a água, sarava de qualquer
doença que tivesse]. (Almeida Revista e Atualizada, Sociedade
Bíblica do Brasil, 2006)
porque
de vez em quando um anjo do Senhor descia e agitava a água. O primeiro doente
que entrava no tanque depois disso sarava de qualquer doença.]
(Nova Tradução na Linguagem de Hoje, Sociedade Bíblica do Brasil, 2005)
porque
um anjo do Senhor vinha de vez em quando e agitava a água; e a primeira pessoa
a descer no tanque depois disso ficava curada. (Nova
Bíblia Viva, Mundo Cristão, 2010)
A
QUESTÃO DOS TEXTOS ORIGINAIS
Vamos agora caminhar no
sentido de entender um pouco sobre o processo de tradução do texto sagrado,
considerando algumas questões.
De onde o Novo Testamento é
traduzido? Dos originais em grego? A resposta é não. Os manuscritos (textos
escritos à mão, autógrafos) originais do Novo Testamento, produzidos em grego
pelos escritores divinamente inspirados, não foram encontrados ainda. O que
existe são cópias antigas dos referidos manuscritos originais. Wilson Paroschi,
professor de Novo Testamento e Interpretação Bíblica, acredita que a perda
prematura dos autógrafos neotestamentários (textos originais), foi provocada
pela pouca durabilidade do material em que foram escritos, o papiro, de menor
durabilidade que o nosso papel. Os manuscritos originais do Novo Testamento
foram lidos e relidos pelos cristãos apostólicos até se desfazerem por
completo.[1] As cópias dos originais
passaram por um processo de cópias e recópias manuais por 14 séculos, findando
com o advento da imprensa. Inevitavelmente, o processo de copilação estava
sujeito a erros humanos.[2] Na atualidade existem mais
de 5.000 manuscritos gregos (cópias) completos ou fragmentários do Novo
Testamento, com cerca de 250.000 variantes. Não há nenhuma uniformidade plena
entre os manuscritos descobertos.[3]
Um fator tranquilizante é o
fato de que quase a totalidade das variantes diz respeito a questões de pouca
ou nenhuma importância, não comprometendo assim questões de ordem doutrinária.[4]
Os críticos textuais prestam
um relevante serviço, pois trabalham no sentido de examinar criticamente a
tradição manuscrita, avaliando e reconstruindo o texto, para que se aproxime o
máximo possível de sua forma original e primitiva (dos autógrafos).[5]
Dois textos gregos impressos
do Novo Testamento tiveram importância nas traduções para a língua portuguesa:
O Texto Recebido (Textus Receptus) e o Texto Crítico (Novo Testamento Grego). O primeiro, que tem sua origem no Novo
Testamento Grego editado por Erasmo de Roterdã, em 1516, baseado em alguns
poucos manuscritos gregos copiados durante a Idade Média, ganha importância no
contexto da língua portuguesa, quando em 1633 serviu de base para a tradução de
Almeida do Novo Testamento, publicada em 1681. O segundo, em sua 16ª edição, editado
por Erwin Nestle, considerado o melhor texto grego disponível da época, que se
utilizou de manuscritos mais antigos descobertos, serviu de base para a edição
Revista e Atualizada de Almeida. Atualmente, o Novo Testamento Grego das
Sociedades Bíblicas Unidas, em sua 4ª edição é, juntamente com a 27ª edição de Nestle-Aland, de 1979, a edição do
texto grego do NT mais conhecida e mais usada por comissões de tradução da
Bíblia em todo o mundo.
É exatamente em razão dos
manuscritos utilizados para a edição destas obras, que há diferenças em seus
textos. No Texto Recebido o versículo 3b e 4 do capítulo 5 de João aparece
normalmente, enquanto no Texto Crítico aqui citado, o referido versículo é
omitido. Dessa forma, a Bíblia Almeida Revista e Corrigida, cuja a tradução
parte do Texto Recebido, mantém normalmente o versículo, enquanto a Almeida
Revista e Atualizada o mantém entre colchetes, indicando assim que o mesmo não
aparece nos melhores e mais antigos manuscritos.
Pode então surgir a seguinte
pergunta: Por qual razão, então, a versão Almeida Revista e Atualizada não
omitiu o versículo, em vez de colocá-lo entre colchetes? A resposta se encontra
na Bíblia de Estudo Almeida, em “Auxílios para o Leitor”:
[...]
No entanto, em respeito a Almeida, o tradutor, e ao leitor familiarizado com
esses textos, eles foram mantidos, só que entre colchetes, como se pode
observar em Mt 5.22, 6.13, etc. Os colchetes indicam que o texto que eles
contém consta na tradução de Almeida, feita no século XVII, mas não faz mais
parte do texto grego do Novo Testamento que hoje é considerado original.[6]
COMENTÁRIOS
SOBRE JOÃO 5.3b-4
Paroschi, ao comentar o
texto de João 5.3b4, argumenta que as evidências são bastantes conclusivas quanto à origem não
joanina, pois a expansão textual está ausente dos melhores e mais antigos manuscritos
gregos, como os Códices Sinaítico e Vaticano e, em particular, os papiros P66 e
P75, duas das mais antigas cópias do Evangelho de João. Conforme o registro
textual, a passagem só começa a aparecer na tradição manuscrita grega a partir
do quinto século.[7]
Esses versículos contém também diversos termos ou expressões completamente
estranhos ao vocabulário joanino. Há ainda dificuldades teológicas relacionadas
aos fatos mencionados nesses versículos:
Se
aceitarmos a autenticidade do relato, então teremos de admitir que quanto mais
egoísta, determinado e forte fosse um homem, mais provável era que chegasse
primeiro à água, atropelando assim os mais fracos e impedindo justamente os
mais necessitados de alcançar a cura.[8]
Sobre a inclusão posterior do texto, Parochi afirma que pode ter decorrido de
alguma nota feita na margem do manuscrito destina a explicar o v. 7, atribuindo
a agitação das águas à visita periódica de um anjo, entendimento que pode ter
origem em alguma crença popular. A informação sobre o “anjo”, portanto, não
deve ser atribuída ao evangelista João.[9]
O movimento das águas
descrito no v. 7 poderia ser decorrente de se tratar de uma fonte intermitente,
que jorra em grandes torrentes por alguns instantes e logo cessam. A presença
de ar nos canais inferiores que interligavam os reservatórios é outra
possibilidade. Nada impede também que a água tivesse propriedades terapêuticas.[10] Parochi conclui
afirmando:
Por
fim, convém lembrar que o milagre relatado por João não é atribuído a nenhuma
virtude medicinal do tanque, nem ao ministério angélico, mas ao próprio Jesus,
que curou o paralítico pelo poder de sua palavra (v. 8), talvez para demonstrar
sua reprovação àquela crença deplorável.[11]
Para Omanso, em sua obra
Variantes Textuais do Novo Testamento, o versículo 4 é um acréscimo ao texto
original, sendo omitido na maioria das traduções modernas, que preferem
colocá-lo numa nota de rodapé, ou entre colchetes, como no caso da Almeida
Revista e Atualizada (ARA) e da Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH).[12]
Kurt e Barbara Aland,
entendem que Jo 5.3b-4 é uma narrativa inserida posteriormente, e de caráter
lendário.[13]
F. F. Bruce, em seu
comentário sobre João, registra que não se pode creditar ao evangelista esta
informação sobre o “anjo”, e que provavelmente ela reproduz a crença popular
sobre a causa das propriedades terapêuticas atribuídas à água. Com base no
versículo 7, pode ser concluir que a água de fato se movia, e que havia alguma
vantagem em entrar no tanque nestas ocasiões.[14]
Vincent, em seu Estudo no
Vocabulário Grego do Novo Testamento, publicado pela CPAD, comenta que as
palavras do final do versículo 3, e todo o versículo 4, são omitidas nos
melhores textos.[15]
CONCLUSÃO
Diante das evidências aqui expostas,
o texto de João 5.3b-4 não deve ser concebido como parte da narrativa original
do evangelista, mas, como uma inserção feita posteriormente por algum copista.
Pregadores e ensinadores devem, ao usar o texto em suas ministrações,
considerar com muito cuidado tais questões, dando maior (ou total) ênfase ao
milagre realizado por Jesus.
Pr. Altair Germano
Abreu e Lima, PE, em
14/05/2014
[1] PAROSCHI,
Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1993, p.
15-16.
[2]
Ibid., p. 16.
[3]
Ibid.
[4]
Ibid., 20.
[5]
Ibid., 16.
[6]
Bíblia de Estudo Almeida. Barueri-SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2006, p.
302.
[7]
Origem e transmissão do Texto do Novo Testamento. Barueri-SP: Sociedade Bíblica
do Brasil, 2012, p. 219.
[8]
Ibid., p. 220.
[9]
Ibid., p. 221.
[10]
Ibid., p. 222.
[11]
Ibid.
[12] OMANSON,
Roger L. Variantes textuais do Novo Testamento: análise e avaliação do aparato
crítico de “O Novo Testamento Grego”. Barueri-SP: Sociedade Bíblica do Brasil,
2010, p. 174-175.
[13] ALAND,
Kurt; ALAND, Barbara. O texto do Novo Testamento: Introdução ás edições
científicas do Novo Testamento Grego bem como à teoria e prática da moderna crítica
textual. Barueri-SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013, p. 312.
[14]
BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1987, p. 114.
[15]
VINCENT, Marvin R. Estudo no vocabulário grego do Novo Testamento. Rio de
Janeiro: CPAD, 2013, p. 107.
7 comentários:
Amém, belo texto. Precisamos de mais textos assim escrito por nossos mestres, bastante elucidativo. Muito bom pastor.
A Paz!
Um outro texto que valeria a pena trazer à baila seria I Jo. 5.7 e a questão da Comma Joanina, que muitos usam como está na Almeida Corrida e se surpreendem ao não encontrar igual redação na Atualizada.
Paz!
sim, mas o contesto do texto justifica o versículo 4 , oras se não o que aquela quantidade de enfermos estava fazendo ali? as águas agitadas relatada pelo mesmo paralitico? e o testemunho dele que o primeiro era curado? e se não fossem o que ele estava fazendo ali? critica por critica temos que ser coerentes.
Prezado Eliezer, o que uma quantidade de enfermos fazem todos os anos em romarias no Brasil?
O que você me fala das curas que muitos testificam ter recebidos de santos e padroeiros?
A afirmação "o primeiro era curado" consta no texto inserido, e não na fala original do paralítico que está no v. 7.
Sugiro uma leitura mais detalhada do texto.
Abraços.
Excelente explanação!
Infelizmente nós dias de hoje, quase ninguém tem o interesse em fazer um seminário teológico.
Quando digo igreja, estou me referindo ao corpo místico, a igreja como organismo. Temos que investir nos nossos ministros, eles precisam sentar num banco de boas escolas teológicas.
As famílias dos obreiros precisam da nossa ajuda (dindim).
Não estou falando desses hipócritas e mercenários!
Hoje, os nossos pastores tem que trabalhar para manter suas famílias e não sobra tempo para preparar um bom estudo, cuidas do rebanho...
Ministério fraco = igual a igreja fraca.
Eduardo aluno do Ietecg Instituto Teológico de Campo Grande RJ
Paz meu querido professor,
Então podemos afirmar que esse paralítico era um pagão, pois sua fe estava fundamentada em uma tradição?
Paz meu querido professor,
Então podemos afirmar que esse paralítico era um pagão, pois sua fe estava fundamentada em uma tradição?
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