A
DOUTRINA DA SALVAÇÃO: UMA BREVE INTRODUÇÃO AO CALVINISMO E AO ARMINIANISMO
IMAGEM: JOÃO CALVINO E JACÓ ARMÍNIO
A salvação pessoal é dádiva
ou esforço? Depende somente de Deus? Depende somente do homem? Deus e o homem
cooperam juntos?
No centro das discussões e
embates acerca da doutrina da salvação, dois conceitos ganham destaque: sinergismo e monergismo.
O sinergismo, do grego syn
(união, junção) e ergía (unidade de
trabalho), significa o trabalho realizado em conjunto. Da perspectiva da
doutrina da salvação (soteriologia), é a afirmação de que Deus e o homem
cooperam para a salvação pessoal.
O monergismo, do grego mono
(um, único, sozinho) e ergon
(trabalho), significa o trabalho realizado por uma única pessoa. Na
soteriologia, é a declaração de que Deus realiza tudo para a salvação pessoal,
e que o homem é absolutamente passivo.
A
DOUTRINA DA SALVAÇÃO NA BÍBLIA
Existe um amplo fundamento
bíblico em favor do sinergismo, ou
seja, de que Deus e homem cooperam para a salvação pessoal, de que dádiva e
esforço estão presentes. Observemos algumas passagens:
Porque
pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus;
não de obras, para que ninguém se glorie. (Ef 2.8-9)
Verificais
que uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente. (Tg 2.24)
Transbordou,
porém, a graça de nosso Senhor com a fé e o amor que há em Cristo Jesus. Fiel é
a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar
os pecadores, dos quais eu sou o principal. (1 Tm 1.14-15)
Veio
para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o
receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que
crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne,
nem da vontade do homem, mas de Deus. (Jo 1.11-13)
Ouvindo
eles estas coisas, compungiu-se-lhes o coração e perguntaram a Pedro e aos
demais apóstolos: Que faremos, irmãos? Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e
cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos
pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo. Pois para vós outros é a
promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é,
para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar.
Com muitas outras palavras deu testemunho e exortava-os, dizendo:
Salvai-vos desta geração perversa. Então, os que lhe aceitaram a palavra foram
batizados, havendo um acréscimo naquele dia de quase três mil pessoas. (At
2.37.41)
Ora,
como recebestes Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele, (Cl 2.6)
Os textos acima citados,
como muitos outros que poderíamos aqui listar, de maneira bastante clara
apontam para uma “graça cooperativa”, e não para uma “graça operativa” na
salvação pessoal.
A
DOUTRINA DA SALVAÇÃO NO PERÍODO DOS PAIS DA IGREJA
Os Pais da Igreja foram
alguns teólogos, mestres e bispos que se destacaram nas gerações posteriores
aos apóstolos, principalmente entre os séculos II e IV, como difusores e
defensores da ortodoxia doutrinária, e da fé cristã. Neste período, a
perspectiva sinergista da salvação, que inclui o livre-arbítrio humano, esteve
presente nos escritos de vários Pais, onde dentre os quais citamos[1]:
Deus,
no desejo de que os homens e anjos seguissem sua vontade, resolveu criá-los
livres para praticar a retidão. Se a Palavra de Deus prediz que alguns anjos e
homens certamente serão punidos, isso é porque ela sabia de antemão que eles
seriam imutavelmente ímpios, mas não porque Deus os criou assim. De forma que
quem quiser, arrependendo-se, pode obter misericórdia (Justino Mártir, Dialogue, CXLI)
Se
não dependesse de nós o fazer e o não fazer, por qual motivo o Apóstolo, e bem
antes dele o Senhor, nos aconselhariam a fazer coisas e a nos abster de outras?
Sendo, porém, o homem livre na sua vontade, desde o princípio, e livre é Deus,
à semelhança do qual foi feito, foi-lhe dado, desde sempre, o conselho de se
ater ao bem, o que se realiza pela obediência a Deus (Irineu, Contra as heresias, IV, 37.1, 4)
Pois
como o homem, desobedecendo, atraiu morte sobre si próprio, assim, obedecendo à
vontade de Deus, aquele que deseja é capaz de obter para si mesmo a vida eterna
(Teófilo de Antioquia, Autolycus,
XXVII)
Mas
nós, que temos ouvido pelas Escrituras que a escolha autodeterminadora e a
recusa foram dadas pelo Senhor ao ser humano, descansamos no critério infalível
da fé, manifestando um espírito desejoso, visto que escolhemos a vida e cremos
em Deus através de sua voz (Clemente de Alexandria, Stromata, 2.4)
Há,
de fato, inúmeras passagens nas Escrituras que estabelecem com extrema clareza
a existência da liberdade da vontade (Orígenes, De Principis, 3.1)
Deus,
tendo colocado o bem e o mal em nosso poder, nos deu plena liberdade de escola;
ele não retém o indeciso, mas abraça o que é disposto (João Crisóstomo, Homilia sobre Gênesis, 19.1)
É a partir de Agostinho de
Hipona (354-430) que o entendimento acerca da salvação pessoal começa a ganhar
ênfase monergista, ou seja, de uma salvação pessoal que depende unicamente de
Deus. Acontece que tal entendimento de Agostinho tem haver com os chamados
escritos tardios ou posteriores.[2] Quando ainda era jovem,
Agostinho escreveu o seguinte:
O
livre-arbítrio, naturalmente concedido pelo Criador à nossa alma racional, é um
poder tão neutro que pode tanto se inclinar para a fé como se voltar para a
incredulidade (O Espírito e a letra)
Sendo
este o caso, os incrédulos de fato agem contra a vontade de Deus quando não
creem no evangelho; não obstante, eles não vencem a sua vontade, mas roubam a
si mesmos o que é grande bem, o maior, e
se enredam nas penalidades da punição (O
Espírito e a letra)
Do
ser humano não pode ser dito que tem a vontade com a qual crê em Deus, sem
tê-la recebido [...], mas não ainda, de modo como se lhe fosse tirado o
livre-arbítrio, e pode ser justamente julgado pelo seu bom ou mau uso (O Espírito e a letra)
Se
crermos que podemos atingir essa graça (e, naturalmente, o cremos
voluntariamente) a questão que surge é: De onde temos essa vontade? Se da
natureza, por que não está às ordens de todos, visto que o mesmo Deus fez a
todos? Se for dom de Deus, então, novamente, por que o dom não está aberto a
todos, visto que “ele quer que todos sejam salvos, e cheguem ao conhecimento da
verdade? Deus indubitavelmente deseja que todos sejam salvos e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade; mas não lhes tirando o livre-arbítrio, pelo bom ou mau
uso do qual poderão ser justamente julgados (O Espírito e a letra)
Em sua obra prima
“Confissões”, enaltecendo a soberania de Deus em detrimento da vontade do
homem, Agostinho declara: “Ordenai o que quiserdes, doai o que ordenardes”.[3] E ainda: “Atribuo a vossa
graça e à vossa misericórdia o me terdes dissolvido, como gelo, os pecados”.[4] Profundamente convicto da
impotência de sua própria vontade em escolher corretamente, Agostinho passou a entender
a salvação pessoal como a soberana dádiva de Deus, sem participação alguma do
homem.[5]
Dessa forma, o entendimento
de Agostinho sobre o livre-arbítrio humano também muda, ao afirmar que Deus
exerce eficazmente o seu poder sobre a nossa vontade:
É
certo que somos nós que agimos quando agimos; mas é ele que noz faz agir, ao
aplicar poderes eficazes à nossa vontade, e disse: eu farei com que vocês andem
nos meus estatutos, e observem os meus juízos, para os cumprirem (Graça e
livre-arbítrio)
Tal pensamento de Agostinho
sobre a submissão absoluta e irresistível da vontade do homem à vontade de Deus
criou uma séria dificuldade. Se é Deus quem controla a nossa vontade, por
qual razão ele não faz com que todos tenham vontade e recebam a graça da
salvação em Cristo Jesus? A resposta de Agostinho foi mais dificultosa ainda,
considerada cruel por alguns[6]:
Como
o Supremo Bem, ele fez bom uso das ações más, para a condenação daqueles a quem
ele tinha com justeza predestinado à punição e para a salvação daqueles que ele
tinha misericordiosamente predestinado à graça (Enchiridion, p. 100).
Ele
percebe que a totalidade da raça humana foi condenada em seu cabeça rebelde
[Adão], por um julgamento divino tão justo que, se nem um simples membro da
raça tivesse sido redimido, ninguém poderia com justeza questionar a justiça de
Deus; e que foi justo que aqueles que são redimidos devem ser redimidos de tal
modo que mostrasse, pelo maior número dos que não são redimidos e deixados em
sua própria e justa condenação, o que toda a raça humana merecia, e para onde o
juízo merecido de Deus teria conduzido mesmo os redimidos, se sua imerecida
misericórdia não se interpusesse, de modo que pudesse ser calada toda a boca
dos que desejam se gloriar em seus próprios méritos, e que aqueles que se
gloriasse o fizesse no Senhor (Enchiridion,
p. 99)
Grande
de fato é a ajuda da graça de Deus, de forma a mudar o nosso coração para
qualquer disposição que agrade a Deus. (A
graça de Cristo)
Agostinho lança dessa forma
os fundamentos teológicos da predestinação para a salvação pessoal, ou seja, Deus
poderia mudar a vontade de todos os homens mediante a sua irresistível graça, salvando
a todos, mas decidiu soberanamente fazer isso apenas com uns poucos, deixando a
“grande massa de perdição” na condenação do inferno.
E por qual razão Deus age
assim? A resposta de Agostinho e de todos os seus seguidores geralmente é: Deus
não deve ser questionado, pois faz o que lhe apraz[7]; Não devemos querer
compreender os mistérios de Deus[8]; Não sei. Observe o que R.C.
Sproul diz sobre a questão:
A
questão continua. Por que Deus salva somente alguns? [...] A única resposta que
eu posso dar a essa pergunta é que eu não sei. Não tenho ideia por que Deus
salva apenas alguns e não todos. Não duvido por um momento que Deus tenha poder
de salvar todos, mas eu sei que ele não escolhe salvar todos. Realmente não sei
por quê. Uma coisa sei. Se agrada a Deus salvar alguns e não todos, não há nada
de errado com isso. Deus não está obrigado a salvar ninguém. Se ele escolhe
salvar alguns, isso de modo algum o obriga a salvar o restante. De novo, a
Bíblia insiste que é divina prerrogativa de Deus ter misericórdia de quem ele
tiver misericórdia.[9]
A declaração de R. C. Sproul
é absolutamente contrária a verdade bíblica de que Deus não tem prazer na morte
do ímpio, que amou o mundo dando Jesus para a salvação de todos, que deseja que
todos os homens sejam salvos, e que não quer quem ninguém pereça:
Dize-lhes:
Tão certo como eu vivo, diz o SENHOR Deus, não tenho prazer na morte do
perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho e viva.
Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; pois por que haveis de
morrer, ó casa de Israel? (Ez 33.11)
Porque
Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas
tenha a vida eterna. (Jo 3.16)
Isto
é bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade. Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e
os homens, Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em resgate por todos:
testemunho que se deve prestar em tempos oportunos. (1 Tm 2.3-6)
Não
retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário,
ele é longânimo para convosco, não
querendo que nenhum pereça, senão que
todos cheguem ao arrependimento. (2 Pe 3.9)
Dizer que Deus decide salvar
uns poucos pecadores interferindo (arbitrariamente) em sua vontade, e que
decide deixar outros condenados ao inferno, quando a Bíblia expressa que o
desejo de Deus é a salvação de todos os pecadores, e que Cristo morreu por
todos, é no mínimo colocar em dúvida o seu caráter e o seu grande e excelso amor.
Tentando minimizar o
problema, John Piper argumenta que para conciliar a afirmação de que Deus
deseja salvar a todos, com a ideia da eleição incondicional (predestinação),
ele é portador de duas vontades, definidas historicamente como vontade soberana
e vontade moral, vontade eficiente e vontade permissiva, vontade secreta e
vontade revelada, vontade de decreto e vontade de preceito, etc.[10]
Entendemos que o desejo de
Deus em relação à salvação de todos os homens é efetivado em razão de seu
compromisso com algo mais elevado, que é a autodeterminação humana, a sua livre
vontade para escolher, fundamental num relacionamento de amor com Deus, e não
pelo fato de incondicionalmente Deus escolher uns poucos para serem salvos, e
deixar na perdição eterna a grande maioria dos pecadores, o que no mínimo
resultaria na ideia de que Deus tem duas maneiras de amar, uma geral e outra
especial. A geral para com todos os pecadores, e a especial para com os pecadores
eleitos incondicionalmente por ele. Isso não condiz com o caráter de Deus.
Esta cruel ideia da eleição
incondicional de Deus nos remonta à oração imaginária citada por R.C. Sproul,
onde ele afirma não saber a resposta para o falto de Deus resolver salvar
apenas alguns:
O
pecador no inferno pode estar perguntando: “Deus, se o Senhor realmente me
amou, por que não me coagiu a crer? Eu preferiria ter meu livre-arbítrio
violentado do que estar aqui neste eterno lugar de tormento”.[11]
Sobre o argumento de que
Deus tem misericórdia de quem quer, Walls e Dongel esclarecem:
Quando
Paulo declara a liberdade de Deus de ter misericórdia com quem quiser [Rm
9.14-18], Paulo não está forjando uma doutrina da eleição incondicional
individual, mas estabelecendo a liberdade de Deus em derramar Sua misericórdia
além dos limites da identidade étnica judaica. Para os judeus que amavam uma
versão mais estreita da misericórdia de Deus, Paulo repetiu a palavra de Deus
dita a Moisés: “Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia e terei
compaixão de quem eu quiser ter compaixão” (Romanos 9:15; cf Êxodo 33:19). Há
uma amplidão na misericórdia de Deus.[12]
James Daane alerta para o
fato de que os capítulos 9-11 de Romanos não provam a doutrina calvinista da
dupla predestinação, nem trata do tema “eleição individual”, antes, é um
comentário sobre o fato da inviolabilidade da eleição de Israel como nação para
o serviço de abençoar todas as nações ao apresentar Jesus Cristo.[13]
A
DOUTRINA DA SALVAÇÃO NA IDADE MÉDIA
Em 529 d.C., No Concílio de
Orange, realizado na França, a primazia da graça sobre as obras foi reafirmada
e elevada à condição de doutrina. Toda iniciativa da salvação pessoal é obra da
graça de Deus, e qualquer ensino contrário sobre essa verdade deveria ser
condenado. Sobre o evento Roger Olson comenta:
[...]
condenaram igualmente qualquer fé na predestinação divina para o mal ou o
pecado, e permitiram aos cristãos fiéis crerem no livre-arbítrio que coopera
com a graça divina. Durante a Idade Média tardia e a Renascença, alguns
pensadores e líderes católicos pareçam solapar a prioridade da graça divina
focalizando demais em atos humanos de penitência. Foi contra essa teologia
oficial dos católicos da Europa, mais do que contra a teologia anterior, a
oficial da igreja, que os reformadores protestantes reagiram.[14]
É exatamente no contexto dos
abusos penitenciais do catolicismo romano, onde as obras e o esforço humano
ganham preeminência na salvação pessoal, que emerge o movimento que culminou
com a Reforma Protestante, com sua ênfase soteriológica inicial no monergismo
agostiniano.
A
DOUTRINA DA SALVAÇÃO EM LUTERO E CALVINO
Apesar de diversos outros
nomes que colaboraram com o processo de implementação e expansão da Reforma
Protestante, os de Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564) ganham
destaque. Ambos adotam o monergismo de Agostinho de Hipona. O próprio Lutero
era um monge agostiniano (seguidor das ideias de Agostinho). Timothy George
comenta:
Visto
que, fora da graça, o homem não possui nem uma razão sã nem uma vontade boa. “a
única preparação infalível para a graça [...] é a eleição eterna e a
predestinação de Deus”. Lutero não se esquivou de uma doutrina de predestinação
absoluta e dupla, ainda que admitisse que “isso é um vinho muito forte e comida
substancial para os fortes”. Ele até restringiu o alcance da expiação aos
eleitos: “Cristo não morreu por todos absolutamente”.[15]
Contra as ideias monergistas
de Lutero, Erasmo de Roterdã escreveu a obra Livre-Arbítrio e Salvação, onde refuta diversos versículos geralmente utilizados para defender as ideias da
teologia de Agostinho, Lutero e Calvino.[16]
A influência de Agostinho
sobre Calvino é também muito clara:
O
que nos chama a atenção na aproximação bíblica de Calvino é, primeiramente, o
seu amplo e, em geral, preciso conhecimento dos clássicos da exegese bíblica,
os quais citava com abundância, especialmente Crisóstomo (c. 347-407),
Agostinho e Bernardo de Claraval (1090-1153).[17]
[...]
eu defino a predestinação, segundo o que ensina a Escritura Sagrada, como o
livre conselho de Deus pelo qual ele governa a raça humana e cada parte do
universo com a sua imensa sabedoria e insondável justiça. [...] as mesmas
objeções maliciosas foram usadas contra Agostinho por homens impuros e sem
valor, como você. Aquele doutor piedoso e santo também expôs uma breve resposta
que hoje bastaria como defesa de minha causa.[18]
Esse
raciocínio não é somente meu, mas também de Agostinho: se previsse aquilo que
não queria que existisse, Deus não seria autoridade suprema.[19]
Nós
adoramos reverentemente os mistérios que ultrapassam em muito nossa compreensão
até que brilhe o pleno conhecimento, quando veremos face a face a quem, hoje,
só conseguimos ver como por um espelho, obscuramente. Agostinho diz que:
“Então, Deus será visto na mais clara luz do entendimento o que os piedosos
presentemente veem pela fé.[20]
Reconheço
que Agostinho dizia que Deus tinha duas vontades, mas que eram tão concordes
uma com a outra que ficará claro, no último dia, que não há diferença em sua
complexa forma de raciocínio.[21]
As ideias de Calvino, influenciadas
por Agostinho, deram nome ao movimento reformado chamado de calvinismo. Dessa maneira, pode-se
afirmar que o calvinismo é na realidade uma extensão do agostinianismo.
A
DOUTRINA DA SALVAÇÃO NO PERÍODO DA PÓS-REFORMA
O pensamento monergista ganhou
novos contornos através dos ensinos do teólogo francês Teodoro de Beza
(1519-1605), discípulo e sucessor de Calvino na liderança da Igreja e da
Academia de Genebra. No contexto acadêmico de Genebra foram desenvolvidas as
ideias definidas como supralapsarismo
(supra=prioridade e lapso=queda).
Da perspectiva teológica, o
supralapsarismo é uma maneira de ordenar os decretos divinos de tal forma que a
decisão e o decreto de Deus em relação à predestinação dos seres humanos, ao
céu ou ao inferno, antecede os seus decretos de criar os seres humanos e
permitir a sua queda:
A
ordem supralapsária dos decretos divinos deixa claro que o primeiro e principal
propósito de Deus no seu relacionamento com o mundo é glorificar a si mesmo
(sempre o motivo principal de Deus em tudo), salvando algumas criaturas e
condenando outras. A dupla predestinação, portanto, logicamente antecede à
criação, à queda e todas as demais coisas, inclusive a encarnação de Cristo e
sua expiação, na intenção e no propósito de Deus.[22]
O pensamento de Teodoro de
Beza difundido pela Academia de Genebra não era unanimidade. Entre os seus
opositores ganha destaque o teólogo e pastor holandês Jacó Armínio (1560-1609),
de onde se deriva o movimento designado de arminianismo.
Após ter estudado teologia
reformada na Academia de Genebra, retornando para a Holanda, iniciou o seu
ministério na igreja reformada de Amsterdã, aos 29 anos de idade, vindo
posteriormente a se casar com a filha de um influente cidadão. Em 1603 foi
nomeado para ocupar a prestigiosa cátedra de teologia na universidade de
Leiden. Armínio rejeitou e criticou abertamente as ideias do supralapsarismo, e também a doutrina
clássica do calvinismo como um todo.
Sua posição foi sinergista. A
controvérsia ultrapassou os limites das salas acadêmicas chegando aos púlpitos
e às ruas, desencadeando em seguida uma guerra civil entre as províncias dos
Países Baixos, que durou de 1604 a 1609, quando da morte de Armínio causada por
tuberculose.[23]
Após a morte de Armínio, quarenta
e seis ministros holandeses elaboraram um documento chamado de “Remonstrância”
(protesto), que resumia a rejeição de Armínio e deles mesmos do calvinismo rígido, e o apresentaram
perante as autoridades políticas da Holanda em 1610. O documento foi dividido
em cinco pontos:
• Artigo I - Que
Deus, por um eterno e imutável plano em Jesus Cristo, seu Filho, antes que
fossem postos os fundamentos do mundo, determinou salvar, de entre a raça
humana que tinha caído no pecado – em Cristo, por causa de Cristo e através de
Cristo – aqueles que, pela graça do Santo Espírito, crerem neste seu Filho e
que, pela mesma graça, perseverarem na mesma fé e obediência de fé até o fim;
e, por outro lado, deixar sob o pecado e a ira os contumazes e descrentes,
condenando-os como alheios a Cristo, segundo a palavra do Evangelho de Jo 3.36
e outras passagens da Escritura.
• Artigo II - Que,
em concordância com isso, Jesus Cristo, o Salvador do mundo, morreu por todos e
cada um dos homens, de modo que obteve para todos, por sua morte na cruz,
reconciliação e remissão dos pecados; contudo, de tal modo que ninguém é
participante desta remissão senão os crentes.
• Artigo III - Que o
homem não possui por si mesmo graça salvadora, nem as obras de sua própria
vontade, de modo que, em seu estado de apostasia e pecado para si mesmo e por
si mesmo, não pode pensar nada que seja bom – nada, a saber, que seja
verdadeiramente bom, tal como a fé que salva antes de qualquer outra coisa. Mas
que é necessário que, por Deus em Cristo e através de seu Santo Espírito, seja
gerado de novo e renovado em entendimento, afeições e vontade e em todas as
suas faculdades, para que seja capacitado a entender, pensar, querer e praticar
o que é verdadeiramente bom, segundo a Palavra de Deus [Jo 15.5].
• Artigo IV - Que
esta graça de Deus é o começo, a continuação e o fim de todo o bem; de modo que
nem mesmo o homem regenerado pode pensar, querer ou praticar qualquer bem, nem
resistir a qualquer tentação para o mal sem a graça precedente (ou preveniente)
que desperta, assiste e coopera. De modo que todas as obras boas e todos os
movimentos para o bem, que podem ser concebidos em pensamento, devem ser
atribuídos à graça de Deus em Cristo. Mas, quanto ao modo de operação, a graça
não é irresistível, porque está escrito de muitos que eles resistiram ao
Espírito Santo.
• Artigo V - Que
aqueles que são enxertados em Cristo por uma verdadeira fé, e que assim foram
feitos participantes de seu vivificante Espírito, são abundantemente dotados de
poder para lutar contra Satã, o pecado, o mundo e sua própria carne, e de
ganhar a vitória; sempre – bem entendido – com o auxílio da graça do Espírito
Santo, com a assistência de Jesus Cristo em todas as suas tentações, através de
seu Espírito; o qual estende para eles suas mãos e (tão somente sob a condição
de que eles estejam preparados para a luta, que peçam seu auxílio e não deixar
de ajudar-se a si mesmos) os impele e sustenta, de modo que, por nenhum engano
ou violência de Satã, sejam transviados ou tirados das mãos de Cristo [Jo
10.28]. Mas quanto à questão se eles não são capazes de, por preguiça e
negligência, esquecer o início de sua vida em Cristo e de novamente abraçar o
presente mundo, de modo a se afastarem da santa doutrina que uma vez lhes foi
entregue, de perder a sua boa consciência e de negligenciar a graça – isto deve
ser assunto de uma pesquisa mais acurada nas Santas Escrituras antes que
possamos ensiná-lo com inteira segurança.
A resposta oficial veio
através do Sínodo de Dort, realizado de 13 de novembro de 1618 a 9 de maio de
1619, com a participação de 84 membros e 18 delegados, que afirmaram os Cinco Pontos do Calvinismo em resposta
aos Cinco Artigos dos remonstrantes arminianos.[24] Os Cinco Pontos Calvinistas reafirmaram:
- A depravação total do
homem
- A eleição incondicional
- A expiação limitada
- A graça irresistível
- A perseverança dos santos
CONCLUSÃO
Ao longo dos séculos as
controvérsias entre sinergismo e monergismo, calvinismo e arminianismo
se propagaram ganhando uma diversidade de variações e contornos em suas
fórmulas teológicas. Alguns calvinistas se aproximaram das ideias arminianas,
enquanto alguns arminianos aderiram a alguns posicionamentos calvinistas.
Na atualidade podemos destacar
como defensores do calvinismo os nomes de R. C. Sproul, John Piper e J. I.
Packer, e do lado arminiano Roger Olson, Norman Geisler e Dave Hunt.
As Assembleias de Deus no
Brasil, maior denominação pentecostal nacional, adota de maneira geral a
perspectiva arminiana, entendendo
que a salvação é integralmente obra da graça de Deus, não merecida nem obtida
por meio das obras, e que ao mesmo tempo é recebida por pessoas que livremente
a aceita mediante o arrependimento e a fé.
Para conhecer os principais
argumentos arminianos e as suas
refutações bastante convincentes aos textos bíblicos utilizados pelos calvinistas na defesa de suas ideias,
sugiro a leitura das obras abaixo relacionadas:
- Teologia Arminiana, de
Roger Olson. Editora Reflexão.
- Contra o Calvinismo, de
Roger Olson. Editora Reflexão.
- História das Controvérsias
Teológicas na Teologia Cristã, de Roger Olson. Editora Vida.
- História da Teologia
Cristã, de Roger Olson. Editora Vida.
- Livre-arbítrio e Salvação,
de Erasmo de Roterdã. Editora Reflexão.
- Por que não sou Calvinista,
de Jerry L. Walls e Joseph R. Dongel. Editora Reflexão.
-Eleitos, mas livres, de
Norman Geisler. Editora Vida.
- Teologia dos Reformadores,
de Timothy George. Vida Nova.
- A Doutrina da
Predestinação, de Severino Pedro. CPAD.
- Teologia Sistemática
Pentecostal, de Antonio Gilberto e outros. CPAD
-Teologia Sistemática: uma
perspectiva pentecostal, de J. Rodman Williams. Editora Vida.
Altair
Germano – Pastor, teólogo, pedagogo, escritor e conferencista.
Atualmente é o 1º Vice-Presidente da Assembleia de Deus em Abreu e Lima-PE
(COMADALPE), Vice-Presidente do Conselho de Educação e Cultura da Convenção
Geral das Assembleias de Deus no Brasil – CGADB, e membro da Diretoria da
Assembleia Administrativa da Sociedade Bíblica do Brasil –SBB.
[1]
GEISLER, Norman. Eleitos, mas livres:
uma perspectiva equilibrada entre a eleição e o livre-arbítrio. 2. Ed. São
Paulo: Editora Vida, 2005, p. 170-180.
[2] OLSON,
Roger. Histórias das controvérsias na teologia cristã: 2000 anos de unidade e
diversidade. São Paulo: Editora Vida, 2004, p. 385-386.
[3]
BROW, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005, p.
428.
[4]
AGOSTINHO, Santo. Confissões.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 56.
[5]
TIMOTHY, George. Teologia dos
Reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 75.
[6] Ibid.
[7] AGOSTINHO,
Enchiridion, p. 98, Apud Geisler, ibid, p. 201.
[8]
CALVINO, João. A providência secreta de
Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 49.
[9]
SPROUL, R. C. Eleitos de Deus. 3. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.
27-28.
[10]
PIPER, John. Deus deseja que todos sejam salvos? São José dos Campos: Fiel,
2014, p. 21.
[11]
SPROUL. C. H. Ibid., p. 27.
[12]
WALLS, Jerry L.; DONGEL, Joseph R. Por que não sou calvinista. São Paulo:
Editora Reflexão, 2014, p. 75.
[13]
OLSON, Roger. Contra o calvinismo. São Paulo: Editora Reflexão, 2014, p. 201.
[14]
OLOSON, Roger. Histórias das controvérsias na teologia cristã: 2000 anos de
unidade e diversidade. São Paulo: Editora Vida, 2004, p. 387.
[15]
GEORGE, Timothy. Ibid., p. 78.
[16]
ERASMO. Livre-arbítrio e salvação. São Paulo: Editora Reflexão, 2014.
[17]
COSTA, Hermistein Maia Pereira da. João
Calvino 500 anos: introdução ao pensamento e obra. São Paulo: Cultura
Cristã, 2009, p. 65.
[18]
CALVINO, João. A providência secreta de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2012,
p. 47-48.
[19] Ibid., p. 58.
[20] Ibid., p. 63.
[21] Ibid., p. 73.
[22]
OLSON, Roger. História da Teologia Cristã:
2000 anos de tradição e reformar. São Paulo: Editora Vida, 2001, p. 469.
[23]
OLSON, Roger.Ibid., p. 471-474.
[24]
PIPER, John. Cinco Pontos: em direção
a uma experiência mais profunda da graça de Deus. S. José dos Campos, SP: Fiel,
2014, p. 12.
9 comentários:
Olá, pr. Altair Germano!
Gostaria de parabenizá-lo pelo seu artigo de excelente elucidação acerca do arminianismo e da ênfase em mencionar o arminianismo no meio pentecostal.
Graça e Paz!
Marlon Marques
Pastor Altair, em épocas de crise de identidade teológica fico extremamente feliz em ler esse artigo que aponta para a igreja e, principalmente para a juventude, o caminho para um teologia sadia e bíblica. Nossos jovens tem sido atacados pelas redes sociais por neocalvinistas que ridicularizam a fé e colocam na conta do arminianismo tudo o que não é calvinismo. Textos como o do senhor ajuda a firmar raízes e preparar e embasar a nova geração na defesa da fé. Parabéns e fico na expectativa de mais textos sobre essa temática. Fraternalmente em Cristo, Rev. Luís Felipe Borduam
Paz do Senhor, Pr. Altair!
Parabéns pelo excelente texto. Esclarecedor, muito equilibrado, e acima de tudo, bíblico!!!
O Senhor seja contigo, irmão!!!
Pr. Altair como explicar a soberania de Deus na salvação do homem?
Segundo:
Se o homem participa da salvação logo Deus não é soberano na salvação do homem e o mérito é humano, se a salvação é 50% do homem e 50% de Deus logo a gloria é 50% do homem e 50% de Deus.
Pastor, a salvação é uma obra exclusiva de Deus. 100% divina.
A Paz do SENHOR!
Pastor Altair, quero parabenizá-lo por esse excelente artigo, que reafirma a identidade arminiana das Assembleias de Deus no Brasil, admiro o senhor por aprofundar esse assunto, enquanto que muitos pastores são negligentes nesse ponto, espero que o senhor aborde mais sobre o tema no blog. Desde que o senhor veio pregar aqui em Aracati-CE na congregação da Cacimba do Povo e de ter falado pessoalmente com o senhor, acompanho o seu blog. Que Deus venha lhe dar cada dia mais sabedoria e conhecimento.
Seu irmão em Cristo, Leandro Gomes da Rocha.
Muito bom! Parabéns, Altair!
A Paz do Senhor pastor Altair Germano quero lhe parabenizar pelo excelente artigo e firmeza nas palavras Que Deus em Cristo continue lhe abençoando.
Uma linda abordagem sobre salvação. Se é introdução, então esperamos mais artigos do tipo. Deus abençoe nobre pastor Altair Germano.
Sempre em Cristo,
Xavier Campos Joaquim
Pr. Altair,
Parabéns pelo estudo. Deus o conserve assim:Dedicado ao ensino.
Aos que pensam diferente, nosso respeito em amor. Soteriologia bíblica, não envolve apenas a soberania de Deus. É como tudo na vida; Envolve aspectos soberanos, permissivos e morais, da vontade de Deus.
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