Há sem dúvida alguma questões
em torno dos propósitos dos dons espirituais que precisam ser esclarecidas.
CONSIDERAÇÕES
GERAIS SOBRE OS DONS ESPIRITUAIS
- A concessão dos dons
espirituais não está fundamentada nos méritos humanos (1 Co
12.11b, 18). É o Espírito que distribui os dons, a cada um, como bem quer
(soberanamente). Cargos e funções na igreja podem ser concedidos pelos líderes
por amizade, paternalismo, politicagem, interesses pessoais etc., mas o
Espírito não age assim. Ele é santo e reto. Não se barganha com o Espírito, nem
ninguém pode comprá-lo;
- Os dons espirituais não nos
tornam melhores do que ninguém (1 Co
12.10-27). O dons espirituais não são um atestado de boa conduta, nem
transforma o caráter cristão. Apesar da manifestação dos dons na igreja de
Corinto, uma série de problemas de ordem moral, familiar, eclesial etc. lá
aconteciam. Os portadores dos dons espirituais não são crentes de primeira
classe, nem devem se vangloriar pelos dons, pois são concedidos para a
edificação pessoal e da igreja (1 Co 14.4) mediante a graça e a misericórdia de
Jesus;
- O batismo com o Espírito Santo não é prerrogativa para se
receber todos os dons espirituais (1 Co
1.1-7). A não ser no caso do dom de variedade de línguas (por questões lógicas
e óbvias da Teologia Pentecostal), entendo que os demais dons de manifestação
do Espírito não necessitam do batismo com o Espírito Santo para atuarem na vida
do crente salvo (alguns declaram que para interpretar as línguas é necessário
ser batizado com o Espírito Santo). Na vida de milhares de servos de Deus os
dons de manifestação do Espírito estão presentes por se crer em sua atualidade,
sem que todos estes sejam batizado com o Espírito Santo. O pastor Antonio
Gilberto, comentando a lição bíblica do 2º Trimestre de 2009, afirma que Daniel
tinha o dom da palavra da sabedoria (Dn 1.17; 5.11, 12; 10.1), em Eliseu
operava o dom da palavra da ciência (2 Rs 5.25, 26) e em Aías (1 Rs 14.1-8),
Moisés, Elias, Eliseu e inúmeros outros servos de Deus tinham o dom de operação
de maravilhas (Js 10.12-14; Jo 6; At 8.6, 13; 19.11;). Eram Moisés, Daniel,
Elias, e Eliseu batizados com o Espírito Santo, para que estes fenômenos
através de suas vidas se manifestassem? Certamente você conhece irmãos e irmãs,
servos e servas de Deus (das mais variadas igrejas, inclusive tradicionais) que
manifestam em suas vidas alguns dos dons de manifestação do Espírito, sem serem
batizados com o Espírito Santo (revestimento de poder evidenciado pelo falar em
outras línguas).
- A biblicidade dos dons (At 17.11). Nenhuma
tradição, credo ou teologia está acima da verdade revelada nas Santas
Escrituras. Nenhum ensino doutrinário e teológico dever ser recebido
passivamente, sem a devida análise crítica e investigação, considerando os
princípios da boa e saudável hermenêutica bíblica.
- A não exclusividade dos dons (1 Co 12.11, 18). Nenhuma
denominação evangélica é detentora dos direitos e privilégios exclusivos da
manifestação do Espírito, que opera tudo em todos.
-
Dons e integridade de caráter
(Mt 7.15-27). Conforme bem colocado por Stanley Horton[1],
os dons dão testemunho da
bondade de Deus, e não da virtude de quem os recebem. Uma falácia que
frequentemente engana as pessoas é a ideia de como Deus abençoa ou usa alguém;
isso significa que Ele aprova tudo o que a pessoa faz ou ensina. Mesmo quando
parece haver uma “unção”, não há garantia disso. Conheço gente que na
igreja fala línguas, profetiza, etc., e não trata bem a esposa, os filhos, além
de dar um mal testemunho onde reside, estuda e trabalha. Trata-se aqui de carisma
sem um bom caráter. David Prior destaca que a rica variedade da operação do
Espírito Santo no corpo de Cristo não tem nenhuma relação com a maturidade
cristã ou com os méritos pessoais.[2]
- Dons e espiritualidade (1 Co 3.1-4; Gl 5.16-26).
A verdadeira espiritualidade é manifesta através de uma vida plena do Espírito,
onde os dons e o fruto do Espírito estão presentes e manifestos. A igreja em
Corinto era plena dos dons (1 Co 1.7), mas muitos ali eram carnais (1 Co 3.1).
Dessa forma, é possível ser “carismático”, “renovado” ou “pentecostal” e ser
carnal. Foster nos informa que um certo pregador envolvido em um caso de
adultério se defendeu perante sua esposa dizendo: “O que estou fazendo não pode
ser errado. As pessoas estão encontrando o Senhor quando ouvem minha pregação.”
E era mesmo. Mas o referido pregador falhara em distinguir entre um dom
espiritual e espiritualidade.[3]
Foster ainda nos relata que um jovem amigo seu de ministério chegou próximo de
repudiar o dom de línguas, em razão de que por um determinado momento em sua
vida pôde exercitar o dom e ao mesmo tempo viver em pecado.[4]
O PROPÓSITO DOS DONS
ESPIRITUAIS
Dentre os propósitos dos dons espirituais estão:
- Fim ou
utilidade proveitosa (1 Co 12.7). O termo grego para útil ou proveitos
é symphéro, que significa dar uma contribuição consistente e relevante,
agregar valor, tornar melhor, proporcionar lucro.[5]
Trata-se de buscar o proveito de todos.[6]
O foco da concessão dos dons do Espírito não é somente o benefício do indivíduo
em si, mas acima de tudo busca a edificação da comunidade cristã, e até dos
não-crentes (1 Co 14.19-25):
Os
dons espirituais, quando empregados conforme o modelo, têm um propósito divino
de bênçãos distintas para os descrentes e também para as igrejas de Deus. Para
este fim, é essencial que esses dons sejam usados com ordem [...].[7]
Em seu comentário de 1 Coríntios, João Calvino
afirma que o Espírito não nos confere os dons em vão e nem os destina para que
sirvam ao propósito da ostentação. Dessa forma, se torna indispensável que
perguntemos com que propósito os dons são conferido? Responde o próprio Calvino
que a este respeito, Paulo responde “com vistas à utilidade”, ou, seja, para
que a Igreja receba benefícios provindos deles.[8]
Kistemaker comenta que:
A
evidência da presença do Espírito na vida do crente serve ao bem comum da
comunidade inteira. O Espírito usa os dons do cristão individual para a
edificação da Igreja (comparar com Ef 4.12), um tema que Paulo mais tarde aplica
em sua discussão sobre a utilidade de falar em línguas (14.4). A intenção aqui
é promover o bem comum e proibir qualquer pessoa de usar um dom em proveito
pessoal. Paulo não descarta que o dom em si pode trazer benefício para a
pessoa, mas Deus confere seus dons sobre seu povo para que todos possam ser
edificados
(14.26).[9]
Dentro da mesma linha de pensamento Morris escreve:
Algum
dom é dado a cada um. Estes dons não são para rivalidade e inveja, mas visando
a um fim proveitoso. [...] Conquanto seja verdade que o homem que tem um dom
espiritual recebe proveito por meio dele, a vantagem é mais ampla. Outras
pessoas também tiram proveito. Na verdade, este é o ponto visado aí. Os dons
espirituais sempre são dados para serem utilizados, e o seu uso é para a
edificação de todo o corpo de crentes, não para algum possuidor individual do
dom.[10]
Para Lopes, a finalidade do dom espiritual é:
[...]
ajudar alguém, fazer algo para alguém, trabalhar por alguém e realizar alguma
coisa por alguém. Não é uma espiritualidade intimista e subjetiva. O dom sempre
está se desdobrando em trabalho, ação, e realização em benefício de alguém. A
finalidade do dom é a realização de alguma obra e ajuda concreta a alguém.[11]
A diversidade dos dons é oportunidade para o
serviço mútuo. O que é absolutamente igual não tem condições de se complementar.
Ajudar é privilégio reservado ao diferente. O dom não serve somente para
usufruto privado.[12]
O ponto, conforme Horton, é que:
Todo
dom que o Espírito Santo distribui é dado por meio de indivíduos “para o que
for útil”, para o bem comum, para o bem do corpo local com um todo. Os dons
ajudarão a edificar a assembleia local, tanto espiritual quanto numericamente,
da mesma maneira que os dons do Espírito Santo o fizeram no livro de Atos.[13]
Emílio Conde, diante dos propósitos dos dons,
entende que:
A
igreja que se diz cristã e não possui os dons do Espírito, pouco ou nada pode
prosperar: o seu crescimento será deficiente, moroso: vegetará em vez de crescer.
Não será unida, porque lhe falta o Espírito de união. Os dons do Espírito são
as jóias com que a Noiva de Cristo (a Igreja) se deve adornar, para o grande
dia, o dia das Bodas do Cordeiro.[14]
- Unidade
(1 Co 12.12-27). O texto de 1 Co 12.12-27, que trata da unidade orgânica da
Igreja, nos possibilita a compreensão de verdades essenciais para a
transformação da nossa maneira de ser, pensar, falar e agir sobre este
organismo vivo e espiritual no qual estamos inseridos, do qual fazemos parte.
a) Fomos todos batizados em um corpo (v. 13a). Em
termos orgânicos e espirituais, a Igreja não é formada de “corpos”, antes, é um
corpo formado de “membros”. Os verdadeiros cristãos, independente de onde
estejam, separados por barreiras denominacionais, doutrinárias, ideológicas,
conceituais, geográficas, sociais ou qualquer outra, são membros “colocados”
para dentro de um único corpo.
b) Bebemos todos de um só Espírito (v. 13b). O
Espírito é a fonte de onde emana vida espiritual. Pelo Espírito somos saciados
e nutridos com a vida de Deus. Todo o corpo com os seus membros podem funcionar
perfeitamente, pois não haverá escassez desta água renovadora. Todos podem
beber, pois não há acepção de órgãos. Não privilégios apenas para alguns. A fonte
é abundante e inesgotável.
c) Temos sentido de ser e fazer apenas na relação
com o outro (v. 14-23). A interdependência é a tônica que rege os órgãos do
corpo. Um órgão não tem sentido sem o outro, pois só existe para servir, não é
um mero adereço no corpo. Nenhum órgão subsiste naturalmente fora do corpo. Só
no corpo ele “é”, e apenas no corpo ele “faz”, se realizando numa relação de
reciprocidade de serviço e de utilidade. Ser órgão é ser “parte de”, e não “ser
em si”.
d) Precisamos ter cuidado com o que pensamos e
dizemos (v. 15, 16 e 21). O pensamento precede a fala. A boca fala daquilo que
o coração está cheio. A fala manifesta os segredos da alma. O fato de achar e
dizer que não somos do corpo não nos tiram do corpo. Afirmar que não precisamos
dos dons uns dos outros, além de manifestar arrogância, revela também o nosso
auto-engano. Precisamos sim um dos outros. Não podemos negar isto com ações ou
palavras. Isolados não iremos longe. Isolados morreremos.
e) Contentemo-nos com a posição que ocupamos no
corpo (v. 18 e 24). É necessário saber que é Deus quem dispõem, coloca,
coordena e concede lugares, funções e honras no corpo. Não é simplesmente uma
escolha pessoal, antes, se trata de uma determinação soberana e graciosa.
Soberana, pois tudo é de Deus, e graciosa, pois não é meritória, não é fruto de
nossas obras ou méritos pessoais ocupar este ou aquele lugar, esta ou aquela
função, receber esta ou aquela honra. Tudo é dele e para Ele.
f) Cuidemos uns dos outros com igual cuidado (v.
25). É preciso entender que somos como membros do mesmo corpo e portadores dos
dons do Espírito, cuidadores. Cuidar implica em nutrir, suster, socorrer,
ajudar, ouvir, apoiar e outras ações. Mas, não devemos apenas ser cuidadores.
Precisamos cuidar de todos sem acepção, sem preferencialismos. É fazer o bem
sem ver a quem. Trata-se de ação misericordiosa e desinteressada. Cuidar é
amar. Cuidar é fazer o que deve ser feito, norteado pelos mais nobres
sentimentos e objetivos.
g) Soframos com o sofrimento alheio (v. 26a). A
indiferença para com o sofrimento dos outros órgãos do corpo, por suas
disfunções, enfermidades, carências ou doenças, não é uma atitude esperada ou
desejada de quem está comprometido com o todo. Chorai com os que choram. Se
coloque no lugar do outro. Tente perceber suas dores, medos, temores,
ansiedades, angústias e frustrações.
h) Alegremo-nos com a alegria alheia (v. 26b). A
inveja, conceituada como “profunda tristeza com o sucesso, conquistas,
vitórias, bênçãos e felicidade dos outros” pode impedir, de alegrarmo-nos com a
alegria do no nosso irmão, do outro membro. Celebremos, festejemos,
regozijemo-nos, alegremo-nos quantas vezes for necessário com a forma de Deus
honrar o nosso próximo.
i) Tenhamos uma visão geral do corpo (v. 27a). Uma
visão geral nos possibilita uma compreensão macro da unidade, da comunhão, da
interdependência, da grandeza, da beleza, da magnitude, da força, da
vitalidade, do crescimento, da força, da inteireza de ser corpo de Cristo, onde
os dons se manifestam. Trata-se de uma visão onde o “eu” se funde com o “tu”
formando um “nós”.
j) Tenhamos uma visão sistêmica do corpo (v. 27b). Tal
visão nos proporciona uma percepção mais apurada e individualizada da
multiplicidade dos dons, das funções (multifuncionalidade) dos órgãos e
membros, das suas particularidades, atribuições e interligações. Das nossas
possibilidades de agregar valor ao corpo, e do valor que os demais membros
agregam a este corpo.
Uma compreensão da unidade orgânica do corpo que
opera através dos dons do Espírito é vital para o seu próprio crescimento, para
a manutenção de sua saúde e funcionalidade, tanto numa perspectiva do todo,
como na perspectiva de cada membro deste corpo. Cresçamos cada vez mais em
unidade para a glória de Deus.
- Edificação
(1 Co 14.1-5; 26-28). O termo grego oiokodome (edificação), originado de
oikos (casa) e dymeo (construir), fala de progresso, crescimento
na vida cristã pessoal e comunitária em sua com relação com Deus e com o
próximo. Paulo utiliza bastante o termo edificação de maneira metafórica com
referência à edificação do caráter cristão.[15]
A edificação através dos dons pode ser pessoal ou congregacional. Como exemplo,
o que fala em línguas edifica-se a si mesmo, enquanto o que profetiza edifica a
igreja (1 Co 14.4). As línguas somente promoverão edificação se houver
interpretação (1 Co 14.5).
Conforme nota de rodapé da Bíblia de Estudo
Pentecostal:
O
propósito principal de todos os dons espirituais é edificar a igreja e o
indivíduo (VV. 3, 4, 12, 17, 26). “Edificar” (gr. oikodomeo) significa
fortalecer e promover a vida espiritual, a maturidade e o caráter santo dos
crentes. Essa edificação é uma obra do Espírito Santo através dos dons
espirituais, pelos quais os crentes são espiritualmente transformados mais e
mais para que não se conformem com este mundo (Rm 12.2-8), mas edificados na
santificação, no amor a Deus, no bem-estar do próximo, na pureza de coração,
numa boa consciência e numa fé sincera [...].[16]
A edificação no contexto do culto esta diretamente
relacionada com a ordem do mesmo. Quando há caos no culto, os adoradores não
recebem benefício espiritual algum, pois a desordem atrapalha o modo de ouvir,
aprender e crer.[17]
Quando conhecemos os propósitos dos dons do
Espírito, nos tornamos aptos a exercê-los biblicamente para a glória de Deus e
edificação dos homens.
[1] HORTON, Stanley M. O que a Bíblia diz sobre o Espírito Santo. 5. Ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1999, p. 225.
[2] PRIOR, David. A mensagem de 1 Coríntios: a vida na
igreja local. 2. Ed. São Paulo: ABU Editora, 2001, p. 210-211.
[3]
FOSTER, K.
Neill. Um caminho melhor: uma
terceira perspectiva sobre línguas. Belo Horizonte: Aliança Cristã e
Missionária, 1987, p. 30.
[6] RIENECKER, Fritz;
ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo
Testamento Grego. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 317.
[7] GEE, Donald. A respeito dos dons espirituais. Miami,
Flórida: Editora vida, 1987, p. 27.
[8]
CALVINO, João. 1 Coríntios. 2. Ed. São Bernardo do
Campo, SP: Edições Parakletos, 2003, p. 377-378.
[9] KISTEMAKER, Simon. 1 Coríntios. São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 2004, p. 582.
[10]
MORRIS, Leon. I Coríntios: introdução e comentário.
São Paulo: Vida Nova, 1981, p. 136-137.
[11]
LOPES,
Hernandes Dias. 1 Coríntios: como resolver conflitos na igreja. São Paulo:
Hagnos, 2008, p. 229.
[12]
BRAKEMEIER,
Gottfried. A primeira carta do apóstolo
Paulo à comunidade de Corinto: um comentário exegético-teológico. São
Leopoldo: Sinodal/EST, 2008, p. 160-161.
[13]
HORTON, Stanley
M. I e II Corintíos: os problemas da
igreja e suas soluções. Rio de Janeiros: CPAD, 2012, p. 113.
[14]
CONDE; Emílio.
Pentecoste para todos. Rio de Janeiro: CPAD, 1985, p. 100.
[15] MORRIS, Leon. Ibid., p. 100.
[17] KISTEMAKER, Simon. Ibid., p. 702.
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